Agora ele não anda mais tão lotado. Perdeu a clientela para percursos mais curtos e objetivos. Com o tempo, seu nome completo deixou de caber na identificação de destino do ônibus, hoje escrito em caracteres digitais. Mas uma das linhas mais antigas de Brasília já foi vital para a mobilidade dentro do Plano Piloto: só havia ela para ligar os braços sul e norte das avenidas L2 e W3.
Todo mundo tem uma história com o Grande Circular. Como outrora, estudantes, idosos e mais mulheres do que homens predominam nos assentos do coletivo. Na instabilidade e no chacoalhar de ônibus antigos e agora micro-ônibus, chegadas e partidas são rápidas. Uma raridade é ver alguém pegar no sono. Quase nunca o coletivo chega à capacidade máxima de lotação. Mas a brevidade dos tripulantes não significa que ali não se colecionem histórias.
;Os idosos do Plano são mais legais. Ichi, tem velhinha que me traz até bombom;, conta a cobradora Luciene de Castro, num sorriso só. Inevitavelmente, os rostos se repetem a bordo do 105.2 durante a semana. A rodoviária acaba fazendo amizade. Uma enfermeira, por exemplo, compra café para ela. As duas papeiam até o momento da despedida, no Setor Hospitalar Sul, onde a passageira desce. ;É bom quando puxam papo. O tempo passa mais rápido;, reconhece.
Cartões-postais
Do lado de lá da catraca, os tripulantes da linha têm outras histórias. A maioria nutre amor e ódio pelo Grande Circular. Pegue a estudante de administração Stefannye Cavalcanti, 19 anos, como exemplo. A faculdade frequentada por ela fica na 616 Sul. Em tese, a moradora da Asa Norte tem algumas boas opções para chegar em casa mais rápido. Quase sempre, no entanto, ela opta pela volta completa do Grande Circular. ;Me dá a chance de ver Brasília. Para mim, é a cidade perfeita. Falta só a praia;, explica.
Entre o fim da L2 Sul e o início da W3 Norte, onde vive, Stefannye gasta quase uma hora. Mas passa pela Catedral Metropolitana de Brasília, pelo Parque Olhos D;Água e pela Ponte do Bragueto, cartões-postais da capital. Para ela, a beleza da vista compensa o tempo. A primeira vez que ela pegou esse ônibus foi em outubro do ano passado, quando queria ir a um evento na L2 Sul e não sabia como chegar. ;Meu pai recomendou o Grande Circular. Talvez porque seja uma das linhas que existe desde o tempo dele;, imagina.
O percurso poderia ser muito melhor se os ônibus fossem mais novos e os funcionários mais gentis, acredita a estudante. O que mais a incomoda é o descaso com pessoas mais velhas. ;Os idosos não são respeitados. E eles pegam muito esse ônibus porque vão se consultar no HUB (Hospital Universitário de Brasília, na Asa Norte). Os motoristas freiam de repente quando eles estão em pé ou não explicam com educação as dúvidas;, critica.
Durante anos, o Grande Circular levou e buscou a professora Isabel Antunes da Silva,
57 anos, do trabalho, na Asa Norte. Ela tem mais memórias desagradáveis do que felizes a bordo do coletivo. Sua reclamação principal é quanto ao mau estado da frota. Mas já passou por casos engraçados. Um deles é recente. Lá estava a professora em um fatídico fim de tarde. Ônibus lotado. Trânsito parado. Eis que entra um pastor e começa a pregar. ;Reclamei e disse que eu não era obrigada a escutar aquilo. Mas acho que só eu estava contra;, conta, rindo. No fim, quando o religioso saiu do ônibus, foi aplaudido por todos. ;Fiquei quieta. Imagina! Podia ser linchada!”, cogita.
Homem da arnica
Não é privilégio do Grande Circular ter figuras diferentes a bordo, mas por muito tempo nele se concentraram alguns dos personagens mais míticos do transporte público de Brasília. ;O homem da arnica; chegou a ser ídolo na década de 1990. Em redes sociais, passageiros relatam um pouco dos encontros com o vendedor (apesar de ninguém saber como ele se chama). Quase todo mundo se lembra de como ele entrava e anunciava, aos berros, o produto natural. Interrompeu bruscamente o sono de muitos. Há tempos, não se sabe por onde ele anda.
Cícero Caetano tenta ganhar a simpatia e o dinheiro dos passageiros vendendo balinha. Em tese, a prática é proibida e muitos motoristas não deixam os ambulantes entrarem. Quando permitem, Cícero aproveita a chance, sem esquecer o espírito de solidariedade com os colegas. ;Só fico na W3 Norte para não atrapalhar o pessoal que trabalha em outros lugares;, conta. Ele ganha mais dinheiro se equilibrando nos ônibus do que em um emprego formal. ;Vou continuar até conseguir algo melhor;, promete. Há cinco anos, não consegue.
Assista ao vídeo com relatos da passageiros sobre o Grande Circular
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Trajeto dos coletivos
Linha 105.2: Terminal da Asa Sul /Vila Telebrasília /L2 Sul /L2 Norte /W3 Norte /W3 Sul
Linha 105.4: Terminal Asa Sul/L2 Sul /L2 Norte /W3 Norte /W3 Sul
Linha 106.2: Terminal Asa Sul/W3 Sul /W3 Norte /L2 Norte /L2 Sul
Personagem da notícia
No comando da catraca
Tudo na vida de Luciene Nascimento de Castro é passageiro, exceto ela e o motorista. Entre as 6h e as 14h30, ela vê a mesma paisagem pelas janelas do ônibus seis vezes. Cinco, em dias de muito congestionamento. Há três meses, a cobradora de 30 anos atua na linha 105.2, uma das três habilitadas para o Grande Circular. Luciene chega sempre bem disposta ao trabalho, lá pelas 5h30, mesmo tendo que acordar uma hora e meia antes para sair de casa, em Valparaíso (GO), até a garagem da empresa, no Riacho Fundo.
Mas a funcionária calibra a simpatia conforme o tratamento que recebe a bordo. Se lhe dão bom dia, ela responde. Se não, devolve o silêncio. Vale a lei da reciprocidade, lição que aprendeu na rotina sacolejante de um trabalhador rodoviário. ;Um dia dei bom dia a uma moça e ela respondeu: ;O dia nem começou ainda. Como você sabe que ele vai ser bom?;;, ilustra.
Faz mais de cinco anos que ela trabalha em transporte público. Antes da lida no Plano Piloto, comandou catracas em linhas de Samambaia, Santa Maria e por aí vai.
Na sua opinião, a educação do público é inversamente proporcional à riqueza do local. ;O pessoal das outras cidades é mais educado com a gente. Acho que é porque a condição do passageiro é mais parecida com a nossa. Em Brasília, tratam a gente pior;, compara.
Para saber mais
Terminal na Asa Sul
Na década de 1970, as autoridades de transporte definiram os primeiros trajetos dentro do Plano Piloto. A lógica era a seguinte: cada asa deveria ter duas linhas circulares, tendo como base a Rodoviária do Plano. À época, na Asa Sul, as linhas 107 e 114 faziam o sentido anti-horário e horário, respectivamente. Na Asa Norte, a mesma lógica ocorria com as linhas 115 e 116. A partir disso, criou-se a programação dos Grandes Circulares, sempre saindo do terminal de ônibus da Asa Sul. Atualmente, as cooperativas Coobratete e Cootarde são as concessionárias das linhas.
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Total de ônibus do circuito Grande Circular. A passagem custa R$ 2 e eles trafegam das 6h05 à meia-noite. O tempo de uma volta completa é de uma hora