postado em 25/11/2012 09:10
O cheiro do feijão preto amolecendo nos fogões da 305 Sul continua fumegando na lembrança do artista plástico Elder Rocha, um dos cinco filhos do artista plástico Elder Rocha Lima que trocou Goiânia pela nova capital, nos anos 1970. Quando chegou a Brasília, o menino de 11 anos se lembrou do aroma do feijão que a avó carioca cozinhava e se sentiu um pouco em casa na nova cidade.
Passados mais de 40 anos, o aroma do feijão preto dos cariocas se misturou ao dos feijões de outras regiões do país, o menino de 11 anos é hoje um homem de 51 e a sensação de pertencimento ao lugar se alastrou do perfume do feijão para um extenso território que vai do apartamento onde mora, à instituição onde trabalha, aos amigos que conquistou. Pode-se dizer que Elder Rocha resume, com sua vida e história, o percurso de uma geração que aprendeu a ser uma espécie única, a de brasiliense do Plano Piloto de Lucio Costa.
[SAIBAMAIS] O bloco de três andares onde mora é uma das primeiras obras do arquiteto João da Gama Filgueiras Lima, o Lelé, na Universidade de Brasília (UnB). Exceto pelo desgaste dos materiais, o conjunto de prédios funcionais da universidade, a Colina Velha, mantém a mesma atmosfera dos anos 1960, quando começou a ser construído. Há um ar de abandono nos equipamentos urbanos, nos parques e gramados. Os predinhos estão com as fachadas desgastadas pelo tempo. Há um silêncio de fazenda, compara Elder. A Colina Velha parece um lugar que foi esquecido pela cidade, que dela faz parte, mas só quem sabe disso é quem nela mora.
O bloco onde mora Elder foi um dos primeiros a serem construídos, junto com a UnB. Foi uma inovação tecnológica, um passo à frente no desenvolvimento da arquitetura moderna, recurso pioneiro no uso de pré-moldado no Brasil. As placas de concreto da Colina Velha são visíveis. ;Elas são iguais às do departamento onde trabalho;, conta Elder, professor de artes visuais da UnB. Naquela época, começo dos anos 1960, o uso da técnica se restringia à Europa. Tinha sido a saída que arquitetos e engenheiros encontraram para recuperar, de modo prático e barato, as cidades das destruições da guerra.
O apartamento tecnológico de Lelé mantém suas qualidades, quase 50 anos depois de construído. A unidade onde mora Elder Rocha preserva as características originais. ;Eu quero manter tudo do jeito que está. É um espaço muito bem pensado. Tem gente que tira a estante da sala, é um absurdo. Com ela, quem está na sala não vê a cozinha e o banheiro.; A estante, a mesa e os armários da cozinha fazem parte do projeto de Lelé. Meio século depois, continuam funcionais e modernos. ;A cozinha parece japonesa. Tem lugar para tudo.; A mesa da cozinha, para seis lugares, também serve de balcão e se acomoda debaixo de um armário que funciona também como uma divisória para a entrada de serviço. Tudo delica e funcionalmente planejado
É uma moradia pequena, de dois quartos, mas de modo algum apertada ou com sala grande e quartos pequenos, como os apartamentos das safras mais recentes do mercado imobiliário. A sala é confortável ; com espaço para um bom sofá de três lugares, uma poltrona, três cadeiras e com espaço para uma mesa redonda com quatro cadeiras, sem impedir ou dificultar o trânsito seguro de moradores e visitantes. Um dos quartos tem varanda com cobogó e espaço confortável para uma espreguiçadeira. O outro quarto é um misto de home-theatre, quarto de hóspedes e escritório, sem que o ocupante se sinta sufocado pelo excesso de móveis.
O apartamento de Elder Rocha tem uma acolhedora atmosfera de casa habitada pelo afeto e não apenas um mostruário de móveis de grife ou uma exposição de obras de arte contemporâneas. Quem ali mora tem bem-querênça de sobra, é o que se depreende dos objetos nas estantes, das histórias de cada um dos móveis, das obras de arte. Tudo foi pessoalizado pela vida do dono da casa. Nada é apenas um design escolhido para compor uma imagem. A história do artista plástico goiano-brasiliense é, em si mesma, um relato de apego pela cidade e de fortalecimento dos laços de amizade. ;Em Brasília, a gente tende muito a viver internamente. As amizades são profundas, muito cultivadas. Não é uma vida para fora como o Rio, é uma vida para dentro de casa. A gente preserva e valoriza muito as relações de amizade, é uma coisa fundamental na cidade;, diz Elder.
O dono da casa teve chance de morar em Londres, quando foi fazer mestrado. ;Tinha amigos, convivia com artistas, me sentia amparado pelo Estado. Se eu quisesse poderia ter ficado lá;, mas faltavam algumas coisas imprescindíveis. ;Me sentia pouco pertencente à cultura, pouco cidadão. Um dia, fiz as contas: Se eu quisesse tomar uma cerveja, eu tinha três amigos a quem podia convidar. Aqui, eu tinha uns cem.; Percebeu, então, que Brasília era o seu lugar.
A rede de amigos que embala vida de Elder na cidade deixa marcas em todo o apartamento. Nas paredes, nos móveis, nos pequenos objetos pendurados na estante abarrotada de livros, no modo como ele foi amadurecendo. ;Brasília tem uma coisa bacana. Aqui, a gente aprende a lidar com pessoas de todos os lugares. Aqui a gente desenvolve o aspecto mais importante da contemporaneidade, que é a tolerância;. É certo que Elder Rocha vive em ambiente protegido, como ele mesmo diz. ;Sou uma pessoa gregária, familiar. E isso combina com o jeito que a cidade funciona;.
No que pôde usufruir do que de melhor o Plano Piloto oferece, Elder Rocha usufruiu e usufrui. Dadas a proximidade e a longa convivência entre seus pares ; ;tenho amigos aqui que conheço desde menino; ; , é muito comum o escambo entre artistas plásticos e entre esses e lojistas de móveis, por exemplo. ;É uma coisa clássica;, que em Brasília se pratica muito. O sofá, a mesa de centro, a poltrona são alguns dos objetos que Elder trocou por suas obras de arte. ;Com meu salário de professor, eu não teria como ter todas essas obras maravilhosas.;
Amparado por duas asas, dois eixos, um sinal da cruz, uma universidade, uma quadra funcional, uma família e muitos amigos, Elder Rocha sabe que habita uma ilha. ;Essa cidade (o Plano Piloto) foi feita para nos dar um conforto absoluto. Ela pode não funcionar em alguns aspectos; e também o mundo mudou. Essa cidade foi construída para ser uma cidade à esquerda, para um mundo socializado;. Falta, porém, a mistura de classes. ;Aqui, a gente não conhece pessoas de níveis culturais diferentes. Se eu quiser conhecer alguém diferente, tenho de ir longe. Tem uma estratificação social. Isso não era pra acontecer, mas, como o mundo caminhou para outro lado, a arquitetura providenciou para que isso acontecesse mais facilmente.;
O apartamento de dois quartos tem 84 metros quadrados, ou seja, é maior do que muito dos novos de três quartos. Tem tamanho decente e confortável, as colunas estruturais aparentes, os móveis práticos e inclusos na obra, representam o ideário daquele tempo e daquela arquitetura. ;Tudo era pra ser funcional, as coisas não precisavam fingir que eram outras coisas (como no caso da coluna aparente). Tudo seria simples e barato, mas todos teriam moradia. Não foi assim que aconteceu. É triste, teria sido melhor.;
Passados mais de 40 anos, o aroma do feijão preto dos cariocas se misturou ao dos feijões de outras regiões do país, o menino de 11 anos é hoje um homem de 51 e a sensação de pertencimento ao lugar se alastrou do perfume do feijão para um extenso território que vai do apartamento onde mora, à instituição onde trabalha, aos amigos que conquistou. Pode-se dizer que Elder Rocha resume, com sua vida e história, o percurso de uma geração que aprendeu a ser uma espécie única, a de brasiliense do Plano Piloto de Lucio Costa.
[SAIBAMAIS] O bloco de três andares onde mora é uma das primeiras obras do arquiteto João da Gama Filgueiras Lima, o Lelé, na Universidade de Brasília (UnB). Exceto pelo desgaste dos materiais, o conjunto de prédios funcionais da universidade, a Colina Velha, mantém a mesma atmosfera dos anos 1960, quando começou a ser construído. Há um ar de abandono nos equipamentos urbanos, nos parques e gramados. Os predinhos estão com as fachadas desgastadas pelo tempo. Há um silêncio de fazenda, compara Elder. A Colina Velha parece um lugar que foi esquecido pela cidade, que dela faz parte, mas só quem sabe disso é quem nela mora.
O bloco onde mora Elder foi um dos primeiros a serem construídos, junto com a UnB. Foi uma inovação tecnológica, um passo à frente no desenvolvimento da arquitetura moderna, recurso pioneiro no uso de pré-moldado no Brasil. As placas de concreto da Colina Velha são visíveis. ;Elas são iguais às do departamento onde trabalho;, conta Elder, professor de artes visuais da UnB. Naquela época, começo dos anos 1960, o uso da técnica se restringia à Europa. Tinha sido a saída que arquitetos e engenheiros encontraram para recuperar, de modo prático e barato, as cidades das destruições da guerra.
O apartamento tecnológico de Lelé mantém suas qualidades, quase 50 anos depois de construído. A unidade onde mora Elder Rocha preserva as características originais. ;Eu quero manter tudo do jeito que está. É um espaço muito bem pensado. Tem gente que tira a estante da sala, é um absurdo. Com ela, quem está na sala não vê a cozinha e o banheiro.; A estante, a mesa e os armários da cozinha fazem parte do projeto de Lelé. Meio século depois, continuam funcionais e modernos. ;A cozinha parece japonesa. Tem lugar para tudo.; A mesa da cozinha, para seis lugares, também serve de balcão e se acomoda debaixo de um armário que funciona também como uma divisória para a entrada de serviço. Tudo delica e funcionalmente planejado
É uma moradia pequena, de dois quartos, mas de modo algum apertada ou com sala grande e quartos pequenos, como os apartamentos das safras mais recentes do mercado imobiliário. A sala é confortável ; com espaço para um bom sofá de três lugares, uma poltrona, três cadeiras e com espaço para uma mesa redonda com quatro cadeiras, sem impedir ou dificultar o trânsito seguro de moradores e visitantes. Um dos quartos tem varanda com cobogó e espaço confortável para uma espreguiçadeira. O outro quarto é um misto de home-theatre, quarto de hóspedes e escritório, sem que o ocupante se sinta sufocado pelo excesso de móveis.
O apartamento de Elder Rocha tem uma acolhedora atmosfera de casa habitada pelo afeto e não apenas um mostruário de móveis de grife ou uma exposição de obras de arte contemporâneas. Quem ali mora tem bem-querênça de sobra, é o que se depreende dos objetos nas estantes, das histórias de cada um dos móveis, das obras de arte. Tudo foi pessoalizado pela vida do dono da casa. Nada é apenas um design escolhido para compor uma imagem. A história do artista plástico goiano-brasiliense é, em si mesma, um relato de apego pela cidade e de fortalecimento dos laços de amizade. ;Em Brasília, a gente tende muito a viver internamente. As amizades são profundas, muito cultivadas. Não é uma vida para fora como o Rio, é uma vida para dentro de casa. A gente preserva e valoriza muito as relações de amizade, é uma coisa fundamental na cidade;, diz Elder.
O dono da casa teve chance de morar em Londres, quando foi fazer mestrado. ;Tinha amigos, convivia com artistas, me sentia amparado pelo Estado. Se eu quisesse poderia ter ficado lá;, mas faltavam algumas coisas imprescindíveis. ;Me sentia pouco pertencente à cultura, pouco cidadão. Um dia, fiz as contas: Se eu quisesse tomar uma cerveja, eu tinha três amigos a quem podia convidar. Aqui, eu tinha uns cem.; Percebeu, então, que Brasília era o seu lugar.
A rede de amigos que embala vida de Elder na cidade deixa marcas em todo o apartamento. Nas paredes, nos móveis, nos pequenos objetos pendurados na estante abarrotada de livros, no modo como ele foi amadurecendo. ;Brasília tem uma coisa bacana. Aqui, a gente aprende a lidar com pessoas de todos os lugares. Aqui a gente desenvolve o aspecto mais importante da contemporaneidade, que é a tolerância;. É certo que Elder Rocha vive em ambiente protegido, como ele mesmo diz. ;Sou uma pessoa gregária, familiar. E isso combina com o jeito que a cidade funciona;.
No que pôde usufruir do que de melhor o Plano Piloto oferece, Elder Rocha usufruiu e usufrui. Dadas a proximidade e a longa convivência entre seus pares ; ;tenho amigos aqui que conheço desde menino; ; , é muito comum o escambo entre artistas plásticos e entre esses e lojistas de móveis, por exemplo. ;É uma coisa clássica;, que em Brasília se pratica muito. O sofá, a mesa de centro, a poltrona são alguns dos objetos que Elder trocou por suas obras de arte. ;Com meu salário de professor, eu não teria como ter todas essas obras maravilhosas.;
Amparado por duas asas, dois eixos, um sinal da cruz, uma universidade, uma quadra funcional, uma família e muitos amigos, Elder Rocha sabe que habita uma ilha. ;Essa cidade (o Plano Piloto) foi feita para nos dar um conforto absoluto. Ela pode não funcionar em alguns aspectos; e também o mundo mudou. Essa cidade foi construída para ser uma cidade à esquerda, para um mundo socializado;. Falta, porém, a mistura de classes. ;Aqui, a gente não conhece pessoas de níveis culturais diferentes. Se eu quiser conhecer alguém diferente, tenho de ir longe. Tem uma estratificação social. Isso não era pra acontecer, mas, como o mundo caminhou para outro lado, a arquitetura providenciou para que isso acontecesse mais facilmente.;
O apartamento de dois quartos tem 84 metros quadrados, ou seja, é maior do que muito dos novos de três quartos. Tem tamanho decente e confortável, as colunas estruturais aparentes, os móveis práticos e inclusos na obra, representam o ideário daquele tempo e daquela arquitetura. ;Tudo era pra ser funcional, as coisas não precisavam fingir que eram outras coisas (como no caso da coluna aparente). Tudo seria simples e barato, mas todos teriam moradia. Não foi assim que aconteceu. É triste, teria sido melhor.;