Renato Alves
postado em 30/09/2013 06:01
Uma das cinco lojas autorizadas a vender armas de fogo no Distrito Federal fica sob o Eixão Sul. A Casa Tucunaré comercializa todo tipo de artigos para caça e pesca, incluindo espingardas de grosso calibre. A fachada e o interior são os mesmos da inauguração, há 28 anos. Alguns clientes, também. O estabelecimento é um dos mais antigos na Galeria dos Estados. A deteriorada passagem subterrânea que une o setores Comercial Sul (SCS) e Bancário Sul (SBS) ainda abriga um tradicional comércio. O trânsito de usuários do Metrô, com a inauguração de uma estação vizinha, deu sobrevida aos negócios. No entanto, o projeto original se perdeu com o tempo e a maioria dos pioneiros não resistiu ao abandono da região e à concorrência dos shoppings.
A passagem entre o SCS e o SBS teve sua estrutura concluída com o Eixão, antes da inauguração da cidade. Mas, nos primeiros 10 anos, permaneceu abandonada. Dessa forma, acabou tomada pelo mato e por criminosos. Para dar uma solução ao problema, em meados dos anos 1970, o governo criou a Galeria dos Estados. Construiu 80 lojas de 18 metros quadrados sob os viadutos da avenida e uma passarela de pedestres entre ambas, com escadas nas extremidades dando acesso aos setores Comercial e Bancário. Fazendo jus ao nome, os boxes seriam administrados por governos estaduais e outros permissionários. Nos espaços, eles venderiam artigos típicos da sua região, principalmente o artesanato. Mas a fórmula não vingou. Dela, restou apenas a placa da Artesanato Potiguar. Gerenciada pela Secretaria de Turismo do Rio Grande do Norte, foi a última loja de um estado. Encerrou as atividades em 1996.
Português pioneiro
No fim dos anos 1970, as lojinhas dos estados começaram a fechar. Nessa época, o português Antônio Bernardes dos Santos adquiriu a permissão para administrar um dos boxes. No de número 10, passou a vender lembrancinhas de Brasília e suvenires da Maçonaria, do Rotary e do Lions Club. Ao 86 anos, o mais velho comerciante da galeria e dono da mais antiga loja em funcionamento mantém a placa original na fachada. Antônio tem no estoque um número superior a 10 mil cartões-postais de Brasília, centenas de pedras de Cristalina (GO) e outros tantos pratos, broches e uma infinidade de penduricalhos da Maçonaria, do Rotary e do Lions.
O português não dá desconto, mas abre exceção aos ;companheiros leões, rotarianos e maçons;, como destaca em faixa na frente da loja. Ele, porém, recompensa qualquer um com histórias de sua vida. Filho de professores, trocou Lisboa pelo Rio de Janeiro, após 14 dias de viagem em um navio. Trabalhou como serralheiro e torneiro mecânico. Já como engenheiro, mudou-se para o Planalto Central, no fim de 1956. Ajudou a erguer muito edifício do Plano Piloto. Casou-se com uma paranaense, com quem teve cinco filhos. Todos criados e crescidos no Gama, onde Antônio ainda mora.
Sem os movimentos de uma das mãos por causa de um acidente, Antônio pensa em se aposentar, mas quer manter a loja aberta. ;Não queria parar. Para ficar feliz, tenho de trabalhar, mas não consigo dirigir mais;, lamenta o português naturalizado brasileiro.
Comes e bebes
No outro extremo da Galeria dos Estados, uma família de origem mineira trabalha unida para manter a tradição em servir alguns dos mais deliciosos sucos em Brasília, segundo revistas e jornais da cidade, além dos fiéis clientes. A Suco e Companhia mantém os mesmos mobiliários e sabores de quase 30 anos atrás, quando foi inaugurada por Silton de Oliveira, um imigrante vindo de Andradas, sul de Minas Gerais. Hoje, aos 53 anos, ele divide as funções de caixa e gerente com um dos quatro filhos, Raphael.
O pernambucano Gabriel Melo conheceu a Sucos e Companhia quando trabalhava na sede do Banco do Brasil, no SBS. Ele se aposentou no banco, mas não deixou de frequentar a lanchonete e a galeria. Abriu uma banca de revistas, que virou livraria e cyber café, a Belgani, em um dos boxes. Aos 58 anos, ele também preside a Associação dos Cidadãos da Galeria, fundada em 2009 por comerciantes e frequentadores. ;Até agora, nossa maior conquista foi a aprovação da lei que regulariza todos os quiosques e que nos dá um termo de permissão de uso das lojas;, ressalta.
Os lojistas e clientes querem mais segurança e a revitalização da área. ;Temos um projeto pronto, que inclui passagem descoberta e que viraria um espaço-cultura;, conta Gabriel Melo. Mas ele critica o desinteresse do governo. ;Já se falou muito em reformas, mas há 25 boxes fechados, alguns, há 20 anos. Eles pertencem ao governo, que deixa de arrecadar imposto.;
Mulheres e armas
Mas, entre lanchonetes, sapatarias e lojas de roupas, ainda há atividades tão antigas quanto a de colecionador de selos. Uma delas é a de barbeiro. Outra, a de engraxate. Há também sapateiro. Mas um dos boxes em que os produtos mais chamam a atenção é o da Casa Tucunaré. Na vitrine, estão expostos rifles que disparam balas de borracha e até letais. Também há munições de diversos calibres. E tudo é oferecido pela argentina Viviana Gonzales, 47 anos, e duas atendentes. ;Sim, muitos homens estranham quando chegam e veem que só tem mulher aqui. E se espantam mais ainda quando mostramos que conhecemos mais de armas do que muitos deles;, comenta Gonzales.
A loja funciona há 28 anos, sempre vendendo material de caça e pesca. Em 2011, Viviana e o marido, um engenheiro também argentino, decidiram comprar o comércio dos antigos donos, que estavam de mudança para outro país. A ideia era passar o negócio para o filho, mas o rapaz foi aprovado em um vestibular na Argentina e para lá se foi. Como não pretendem deixar Brasília, os pais assumiram de vez a loja. ;Apesar de estar em um lugar incomum, temos muito clientes. Muitos são policiais e praticantes de tiro esportivo;, conta Viviana. Ela reclama da falta de policiamento ostensivo na galeria, mas diz ser a única ainda não assaltada no espaço. ;Deve ser por causa das armas, né!”, observa.