postado em 23/02/2014 11:19
;Foi quase um ano sem notícias. Pensava que ela estivesse morta. Um dia, me ligaram dizendo que a minha filha estava internada em uma unidade psiquiátrica em Uberlândia (MG). Ela estava vivendo como mendiga e foi recolhida por um grupo que dá assistência à população de rua. Depois de alguns dias no hospital, conseguiu, finalmente, lembrar o telefone de casa.; O relato dramático é de Neusa Francisca de Paula, 49 anos, uma dona de casa que mora no Guará e, há cerca de seis anos, sofre com a dependência química da filha mais velha. Mas Neusa não está sozinha. O Correio conversou com mulheres que tiveram a vida transformada depois que a maconha, o álcool, a cocaína e o crack roubaram seus filhos e, a partir de hoje, conta essas histórias de dor e de esperança.
Os depoimentos trazem detalhes da rotina das mães que vivem dilemas diários diante dos desafios impostos pelo vício. Muitas sacrificam a própria sobrevivência para a internação dos filhos. Outras chegam ao extremo de comprar drogas ou pagar dívidas com traficantes para afastá-los da violência. As críticas de familiares, as dificuldades em encontrar tratamento e o medo de perdê-los são sentimentos comuns a essas mulheres, que, apesar de tudo, não desistem deles.
É o caso de Neusa, que viu a comemoração dos seus 49 anos quase acabar em tragédia. Depois de receber amigos e parentes para um almoço, a dona de casa presenciou a filha mais velha, dependente química, atingir, com uma garrafa quebrada, o marido. A festa de aniversário terminou com polícia, ambulância, delegacia. Érica Paula da Silva, 32, está presa desde aquele dia, 18 de agosto de 2013. ;Ela teve um surto, queria me matar e matar o padrasto. Foi o auge da loucura dela;, conta.
O episódio marca a história de luta da mãe pela recuperação da filha, que começou a usar drogas quando se casou, há cerca de seis anos. ;Quando o problema bateu na minha porta, foi um baque. Eu a eduquei da mesma forma que os meus outros cinco filhos, não imaginava que isso aconteceria conosco;, lembra. Após um namoro relâmpago, Érica e Jorge (nome fictício) decidiram formalizar a união na igreja e no civil. A filha de um relacionamento anterior da jovem foi morar com eles.
Depois que os dois passaram a dividir o mesmo teto, Neusa soube que o genro tinha várias passagens na polícia por roubo. Em pouco tempo, a filha dela também começou a praticar pequenos furtos e se afastou da família. Não demorou muito para a mãe descobrir que a filha estava usando drogas. ;Quando em me toquei do vício, ela já não falava coisa com coisa.;
Apavorada, ofereceu ajuda, mas os dois mudaram-se para o Entorno. Érica engravidou da segunda filha e aumentaram as preocupações de Neusa. O contato passou a ser cada vez mais raro. A cada mês, o casal se mudava para outra cidade. ;Sempre que conseguia encontrá-la, ia até o local, dava assistência e tratava de fazer amizades com algumas pessoas para ter sempre informações. Uma delas foi o dono de um ferro-velho no Jardim Ingá (GO), que sempre me dava notícias. Esse senhor tinha pena, sempre a via pelas ruas, usando droga, apanhando.;
Em 2009, o casal se separou. Jorge ficou com as duas meninas e voltou para Brasília, mas Érica sumiu. Mais de um ano depois, Neusa recebeu um telefonema e soube que a filha estava em Minas. Ela não tinha ideia de como a jovem tinha conseguido chegar até lá. Soube depois que Érica pediu caronas e chegou a se prostituir para seguir viagem.
;É um pedaço da gente;
Acabou presa por mais de um ano depois de tentar assaltar uma loja. Em 2011, apareceu na porta da casa de Neusa, no Guará. ;Não sabia se chorava, se ficava triste, mas o meu coração ficou tão alegre. Eu agradeci a Deus por minha filha estar viva. É um pedaço da gente;, conta, em lágrimas.
Em pouco tempo, as preocupações voltaram. ;Ela não parou com as drogas, retomou os contatos com os antigos amigos. Usava todo o tipo de porcaria, álcool, cocaína, maconha. Mas foi com o crack que a vida dela acabou.;
Muitas vezes, a família precisou chamar o Corpo de Bombeiros para conter as crises. Foram muitas internações no Hospital São Vicente de Paula, unidade localizada em Taguatinga e dedicada a pacientes psiquiátricos. ;Ela ficava na rua três, quatro dias. Voltava para casa louca e dizia que queria me matar. A polícia vivia na nossa porta. Os meus outros filhos viviam apavorados e começaram a ter antipatia pela irmã, medo mesmo.; As temporadas longe de casa ficavam cada vez mais longas.
Neusa lembra que muitas vezes encontrava a filha pedindo esmola em comércios. ;Às vezes, ela me perguntava se podia ir em casa comer. Aquilo acabava comigo. Ela chegava toda suja, fedida;, lembra. Quando Érica estava em casa, todos precisavam ficar de olho, pois a jovem levava objetos para trocar por crack. ;Vivia um conflito muito grande e já não tinha mais vida. Mesmo ela me roubando e fazendo confusão, eu pensava: ;É minha filha também;;, confessa a mãe.
Pedido de socorro
Neusa descobriu que a filha também estava doente numa conversa com uma amiga. ;Ela me disse: ;Você já percebeu o tanto que a sua filha está doente? Ela está precisando de ajuda. Não desiste, porque ela precisa de você. A Érica só tem você. Ela roda, roda, mas acaba sempre na porta da sua casa, não perdeu a referência. Ela está te pedindo socorro;.;
Decidida a recuperar a filha, ela procurou o pai de Érica e os dois resolveram que era a hora de interná-la em um centro de recuperação. Optaram por uma clínica em Goiás e pagaram, com muito sacrifício, R$ 15 mil pelo tratamento que durou 10 meses. Lá, ela recebeu o diagnóstico de bipolaridade e esquizofrenia, doenças desencadeadas pelo uso abusivo de entorpecentes. A cada 15 dias, a mãe visitava a filha. Durante esse tempo, Neusa descobriu que a doença de Érica afetou a saúde de toda a família. A dona de casa, por exemplo, precisou tratar de uma depressão.
Após quase um ano de internação, Érica voltou melhor, com promessas de que não fumaria mais crack nem voltaria para a rua. Aos poucos, porém, Neusa acompanhou a retomada dos velhos hábitos, que culminaram na prisão da filha por tentativa de assassinato. Hoje, a jovem aguarda pelo julgamento na Penitenciária Feminina do DF. ;Ela tem um dívida com a sociedade, precisa pagar, mas a minha filha está doente e precisa de um tratamento também;, avalia.
Neusa trabalha pela instalação do Instituto de Codependentes Químicos do DF, da qual é presidente. A possibilidade de ajudar outras mães e usuários põe um sorriso no rosto da mulher cansada de sofrer. Às voltas com o processo da filha, a dona de casa ainda não teve coragem de visitá-la na prisão. ;Ela me mandou uma cartinha desejando feliz Natal. Agora, estou preparada para ir lá;, garante.
Para saber mais
Doença afeta toda a família
Os danos psicológicos e físicos causados aos parentes mais próximos de um usuário de drogas foram quantificados recentemente por pesquisadores brasileiros, por meio do Levantamento Nacional de Famílias dos Dependentes Químicos, coordenado pela Unidade de Pesquisa em Álcool e Outras Drogas, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
O estudo estima que pelo menos 28 milhões de pessoas vivam hoje no Brasil com um dependente químico em casa. Ao todo, 3.153 famílias de todas regiões do país foram entrevistadas, de junho de 2012 a julho de 2013. Entre as pessoas ouvidas, as mulheres foram maioria (80%). Dessas, 46% eram mães.
Os efeitos do problema na saúde dos parentes foram comprovados pela pesquisa. Eles apresentam significativamente mais sintomas físicos e psicológicos que a média da população. Observou-se também que as mães sofrem mais esses danos que outros familiares.
A pesquisa constatou ainda que muitas mães abandonam as atividades, são demitidas ou têm a produtividade reduzida em função de atrasos constantes ou de problemas de saúde. Os impactos na vida financeira das famílias também são grandes. Entre os entrevistados, quase a totalidade afirmou bancar inteiramente o tratamento.
De acordo com Ronaldo Laranjeira, um dos coordenadores do estudo, o conhecimento dessas informações é de fundamental importância para o planejamento de tratamentos mais amplos e eficientes e de políticas de saúde pública com foco no amparo dessa população.