Impunes na esfera estadual, crimes atribuídos a policiais militares goianos que atuam ou trabalharam no Entorno do Distrito Federal foram federalizados. A decisão partiu do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em sessão realizada na tarde desta quarta-feira (10). Por unanimidade, ministros da Corte acataram parcialmente o pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR) e transferiram quatro processos da Justiça estadual para a Justiça Federal. É a quinta vez que o STJ julga uma ação como essa. A dessa quarta coincidiu com o Dia Internacional dos Direitos Humanos.
Parte dos crimes federalizados dizem respeito à mortes em série ocorridas em Goiânia e denunciadas pelo Correio Braziliense desde 2009, por terem características de ação de um grupo de extermínio. Todas as vítimas eram moradoras de rua e teriam sido executadas por policiais militares goianos em uma espécie de limpeza, em troca de propinas de comerciantes.
[SAIBAMAIS]
Os casos estão entre os 50 apurados pela Polícia Federal e que culminaram na Operação Sexto Mandamento, em fevereiro de 2011, com a prisão de 19 PMs de Goiás. Entre esses crimes, muitos aconteceram em cidades vizinhas de Brasília, após uma equipe da PM ser transferida de Goiânia ; onde promoveram uma matança em série ; para o Entorno (veja Entenda o caso).
Na sessão do STJ, Pedro Paulo Guerra de Medeiros, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) lembrou que dos 43 crimes contra moradores de rua em Goiás oito ainda se mantêm passíveis de análise pelo STJ para federalização. Medeiros ressaltou que ;os fatos são gravíssimos e atentam contra direitos humanos;, mas poderou se havia necessidade de deslocamento das ações.
Morosidade
A PGR queria que oito casos parados na Justiça goiana fossem repassados para a Justiça Federal, com acompanhamento do Ministério Público Federal e diligências da Polícia Federal. Com a decisão desta quarta, quatro vítimas terão os casos federalizados, o restante das ações será mantido na Justiça de Goiás, mas com recomendação de prioridade.
Em agosto último, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, deu parecer favorável à federalização de investigações das oito ações penais e inquéritos policiais de crimes de homicídio, tortura e desaparecimentos forçados cometidos em Goiás. O parecer consta da manifestação final enviada ao ministro Jorge Mussi, do STJ, relator do Incidente de Deslocamento de Competência (IDC-3), nome oficial do pedido (veja Para saber mais).
O governo do Estado ,segundo Janot, não tomou providências para investigar outros casos de desaparecimento forçado. Há ainda casos levados ao Judiciário que sequer têm a fase inicial do processo concluída. Por isso, o procurador considera a necessidade de federalização também para garantir o processamento dos autos em prazo regular. Dessa forma, ele rebate, além do governo goiano, o Tribunal de Justiça e o Ministério Público do Estado de Goiás, que se posicionaram contrários à federalização.
Em junho, a pedido de Mussi, uma diligência foi enviada à Goiás para analisar o andamento de cada investigação. Os técnicos do STJ constataram que os inquéritos não vinculados a pessoas presas estavam parados.
Relatórios
O parecer de Janot precede a decisão do ministro sobre o caso, em tramitação no STJ há um ano e meio. O pedido de federalização começou a ganhar força, em agosto de 2008, quando o deputado estadual Mauro Rubem (PT), presidente da Comissão de Direitos Humanos, Cidadania e Legislação Participativa da Assembleia Legislativa de Goiás, enviou à Brasília relatório sobre os crimes cometidos no Estado, com fortes características de ;grave violação de direitos humanos.;
Com o parecer final, Janot faz a primeira manifestação sobre o IDC-3, já que, em maio do ano passado, o pedido foi apresentado ao STJ pelo então procurador-geral da República, Roberto Gurgel, até com crimes desvendados pela Operação Sexto Mandamento. O IDC-3 elencou cerca de 40 casos que deveriam ser federalizados, mas, depois de analisar os autos, Janot verificou que alguns deles já foram encaminhados ao Judiciário e têm decisão final e outros estão sendo investigados, em prazo considerado ainda razoável.
Vai e vem
De acordo com a PGR, a paralisação da investigação de casos de tortura, desaparecimento forçado e assassinatos de pessoas, em geral que vivem em situação de rua ou usuários de drogas, justifica a mudança nos responsáveis pelos processos. Conforme o texto, ;tais inquéritos policiais não são periodicamente enviados, seja ao Ministério Público seja ao Poder Judiciário, para renovação do prazo para realização de diligências, ficando totalmente ao alvedrio da autoridade policial o momento de adoção de medidas investigativas ou o encerramento das investigações;.
O envolvimento de agentes públicos, como policiais militares, também é apontado como um possível limite para a conclusão da apuração, no âmbito estadual. Mesmo em casos em que a instrução foi concluída e o julgamento feito, não é possível ter certeza ;de que as particularidades do crime ou a posição dos acusados [policiais militares] não influenciaram no desfecho negativo da causa, uma vez que não foi admitido o recurso especial interposto para a acusação;.
Tortura e execução
A ação elenca os casos cuja investigação deve passar para competência da Justiça Federal: a tortura praticada por policiais das Rondas Ostensivas Táticas Metropolitanas (Rotam) contra usuários de drogas, em uma borracharia, em 2008; o homicídio de Higino Carlos Pereira de Jesus e o desaparecimento de Pedro Nunes da Silva Neto e Cleiton Rodrigues, em 26 de fevereiro de 2010, nos quais há como suspeito um policial militar.
Além desses, também consta a tortura praticada, por sete horas, no Batalhão da Polícia Militar goiana, contra uma pessoa investigada por suposta participação no crime de estupro de duas adolescentes; crime de tortura praticado por policiais militares do Grupamento de Radiopatrulha (Graer) contra um suspeito de envolvimento no desaparecimento e morte da filha.
Das 16 ações penais instauradas a partir da Operação Sexto Mandamento, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, sustenta que quatro devem ser federalizadas. Ele aponta ;demora excessiva; na apuração dos crimes e, também, no andamento das ações na Justiça goiana, considerando as diligências realizadas no Estado pelo juiz Paulo Marcos de Farias, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC), designado pelo STJ.
Entenda o caso
A Operação Sexto Mandamento, deflagrada em fevereiro de 2011, colocou atrás das grades 19 policiais militares goianos acusados de integrar um grupo de extermínio no estado. A investigação conduzida pela Polícia Federal revelou que integrantes da corporação, inclusive de alta patente, executavam suspeitos com tiros na nuca e, mesmo assim, alegavam resistência da vítima.
A Superintendência da Polícia Federal em Goiânia desencadeou a operação após começara a apurar cerca de 50 mortes em confrontos com a Polícia Militar na capital do estado e no Entorno do DF. Matança denunciada pelo Correio, em série de reportagens, desde 11 de maio de 2009. As matérias denunciavam a responsabilidade de PMs em pelo menos 20% dos homicídios registrados em Formosa (GO), a 70km de Brasília. Em 2008, os PMs admitiram ter tirado a vida de 10 das 48 pessoas assassinadas. Outros cinco casos ocorreram no segundo semestre de 2007. Na maioria dos registros, os militares alegaram confrontos com bandidos armados. Mas, grande parte das vítimas não respondia por delitos graves e morreu com ao menos um tiro na cabeça. Em quase nenhuma suposta troca de tiros houve moradores como testemunhas.
O aumento no número de mortes no município com a chegada do major Ricardo Rocha Batista ao batalhão de Formosa, em 2007, chamou a atenção do Ministério Público e da Polícia Civil de Goiás, que abriram investigações sigilosas na capital do estado. Antes de Formosa, o major esteve em Rio Verde (GO), onde é acusado de executar cinco condenados que haviam fugido da cadeia e de matar com cinco tiros um homem desarmado.
Apesar do histórico de violência, os PMs ficaram pouco tempo na cadeia após a Sexto Mandamento. Hoje, quase todos estão livres, na ativa e gozando de prestígio nos quartéis. Há suspeitas de que um deles voltou a matar.
PARA SABER MAIS
Violações de direitos humanos
O IDC foi criado pela reforma do Judiciário ( EC 45/2004) e visa transferir para a esfera federal a investigação e ou julgamento de crimes ordinalmente de alçada estadual. Há dois requisitos constitucionais: serem graves violações de direitos humanos e poderem levar à responsabilização internacional do Brasil. Somente o PGR é legitimado para sua propositura perante o STJ.
Até hoje, foram ajuizados o IDC 1, no caso da irmã Dorothy, não deferido, em especial porque o governo do Pará se esforçou para conseguir que os executores fossem identificados. O IDC 2, no caso dos grupos de extermínio que atuam nos estados de Pernambuco e Paraíba, que teve um único processo federalizado, o do advogado e defensor de DH Manoel Mattos (depois de vários acontecimentos, o julgamento dos seus assassinos deve ocorrer neste ano, na Justiça Federal de Pernambuco.
O IDC 3 trata da violência institucional da PM de Goiás. Já o IDC 4, ajuizado por um cidadão em causa própria, foi arquivado por ilegitimidade da parte. Ajuizado em maio de 2014 e deferido em agosto, o IDC 5, federalizou o caso da execução do promotor de Justiça de Pernambuco Thiago Faria Soares, em outubro de 2013.