Jornal Correio Braziliense

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Lucio Costa viu Brasília pronta só em 1974. Foi quando o arquiteto chorou

O criador visitou a cidade durante um seminário. Sob intensa emoção e insistentes aplausos do público, lembrou-se de Juscelino e defendeu a sua invenção

Foram necessárias mais de duas horas de conversa para que o senador Cattete Pinheiro (1912/1992) conseguisse convencer o arquiteto Lucio Costa a participar do 1; Seminário de Estudos dos Problemas Urbanos de Brasília, ocorrido em agosto de 1974. Fazia dez anos que o arquiteto não visitava a cidade -- a rigor, ele nunca tinha efetivamente conhecido a sua invenção. Das três vezes anteriores, o vencedor do concurso do Plano Piloto não viu a criatura -- seja porque ela ainda não havia sido construída ou porque tenha vindo de passagem.

"Como é que pode? Como é que vocês conseguiram fazer tanta coisa? A impressão que levo é de espanto. É fantástico! É uma coisa comovente sentir essa cidade viva, como está. Brasília é bela. Brasília tem tudo para ser uma grande cidade", exultou Lucio Costa diante de um Senado lotado, plenário e galerias. "Os senhores me deem um pouco de tempo porque estou emocionado". Seguem-se aplausos ao homem de 72 anos que abaixou a cabeça e chorou. Foi um choro intermitente. No plenário, estavam os participantes das conferências e os convidados ilustres. Nas galerias, os brasilienses comuns, muitos deles estudantes de arquitetura.

Lucio Costa chegou num sábado 3 de agosto, às 11h20. Veio com a filha Helena. A outra filha, Maria Elisa, já esperava por ele em Brasília. Já no aeroporto, uma multidão o aguardava, segundo os jornais da época (Correio Braziliense e Folha de S. Paulo deram chamadas na primeira página. O Globo cobriu com destaque a visita do arquiteto à cidade que projetou). Foi recebido pelo senador Cattete Pinheiro, pelo secretário de Educação do DF, embaixador Wladimir Murtinho, e pelo médico Ernesto Silva, entre tantas outras autoridades. O governador Elmo Farias não foi ao aeroporto.

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Ainda no desembarque, cercado por jornalistas, o arquiteto foi conciso: agradeceu o insistente convite do senador e disse que a nova capital "já não é mais uma criança guiada pelas mãos dos pais, mas uma moça bastante crescida".

No mesmo sábado, fez um tour rápido pelo Plano Piloto. Ao lado de Cattete Pinheiro, visitou a Catedral (que, à época, não tinha os vitrais de Marianne Perretti), e posou para fotos na rampa do Congresso Nacional. Eram anos de ditadura. Os jornais estavam sob censura. Portanto, não havia nenhuma notícia das atrocidades cometidas nos porões do regime. Em agosto, setembro e outubro de 1974, o Exército empreendeu a mais feroz ofensiva militar à guerrilha do Araguaia. As manchetes dos jornais, porém, dedicavam-se a assuntos internacionais. O tema mais importante do período era o escândalo Watergate, caso de espionagem política que levaria à renúncia do então presidente Richard Nixon. Em Brasília, era a visita de Lucio Costa.

Os governadores da cidade eram indicados pelo Senado e a Comissão do Distrito Federal, à época presidida pelo paraense Cattete Pinheiro, respondia pelo parlamento distrital. Votava projetos de lei sobre matéria tributária e orçamentária, sobre serviços e servidores públicos. "Tem assim o Senado, disse Pinheiro na ocasião, o irrecusável dever de estar atento a tudo quanto acontece na capital da República, quer no desenrolar dos acontecimentos, com influência na vida urbana, econômica, social e política."

Aos 14 anos, a cidade já enfrentava "graves problemas urbanos, em que pese a ousadia de seu plano urbanístico, em relação ao qual ou não foram seguidas com fidelidade algumas das linhas mestras de sua filosofia, ou ocorreram falhas no acompanhamento de sua execução", afirmou o senador ao Correio, um dia antes do início dos debates.

Por curiosa ironia, naqueles dias, o Plano Piloto ganhava os primeiros semáforos. Enquanto Lucio Costa falava ao plenário e às galerias do Senado, a L2 Sul inaugurava os sinais luminosos que o arquiteto tentou evitar com a eliminação dos cruzamentos. A preocupação do Departamento de Trânsito era proteger os estudantes na travessia do pista próximo às escolas. Foi preciso ensinar aos pedestres o funcionamento do mecanismo e o significado das cores verde, vermelha e amarela e dos bonequinhos.

O arquiteto passeou pelo Lago Sul e fez críticas até hoje procedentes. Chamou as mansões de "casario pretensioso", e incluiu no pacote até mesmo as casas da Península dos Ministros. A insignificância da arquitetura do bairro nobre comprometia o conjunto da cidade e anulava a beleza das poucas construções que faziam justiça à qualidade arquitetônica de Brasília. Deixou uma sugestão: que se plantassem árvores frondosas para que elas encobrissem "essa vulgaridade inconcebível".

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Quarenta anos depois, dois arquitetos e um geógrafo relembram as impressões mais fortes que ficaram daquele histórico seminário. Ativistas em defesa de Brasília desde aqueles anos, Frederico de Holanda, José Carlos Coutinho e Aldo Paviani preservaram, no fundo da memória, a imagem de Lucio Costa, sentado no lugar do presidente do Senado, chorando como um bebê diante dos brasilienses. O Correio de 7 de agosto de 1974 qualificou de "convulso" o choro do arquiteto.

Exceto Coutinho, os outros dois viam Lucio Costa pela primeira vez. "Uma pessoa incrível, profundamente afetuosa e ao mesmo tempo muito rigorosa. Um intelectual muito tranquilo, um grande humanista", descreve Frederico de Holanda, professor da Universidade de Brasília. Então diretor da Faculdade de Arquitetura da UnB, José Carlos Coutinho participou da organização do seminário. "Eu estava na mesa;Lucio Costa começou a falar; e daí a pouco ele disse: ;Essa cidade cresceu muito, eu já não entendo mais essa cidade;, abaixou a cabeça e desabou em choro. O plenário reagiu num aplauso estrondoso. Não houve quem ficasse indiferente".

[SAIBAMAIS] Geógrafo e professor emérito da UnB, Aldo Paviani também conservou no espírito a ressonância dos aplausos a Lucio Costa. "Me lembro quando ele reclamou da aridez da cidade, da falta de árvores, que era muito inóspita, e todo mundo aplaudiu".

Ter ouvido e visto Lucio Costa falando sobre a cidade ajudou o professor Frederico de Holanda a analisar o Plano Piloto com menos maniqueísmo. "Ele teve a coragem de fazer um projeto em que o espaço monumental tinha lugar. Até então era um anátema do urbanismo moderno. Ninguém tinha coragem de fazer isso. Acreditava-se que a monumentalidade era fruto das cidades totalitárias. Não era não. O monumental sempre fascinou os seres humanos. É a dimensão estética do sublime. É um desafio para que a gente supere nossa pequenez."

Pode-se dizer que a convulsão emocional de Lucio Costa e do público se repetiu meia dúzia de vezes. Maria Elisa Costa se lembra de outro: foi quando o pai, nos primeiros minutos do pronunciamento, quebrou a proibição tácita imposta pela ditadura e pronunciou dentro do Congresso o nome do maior inimigo do regime militar. Depois de reverenciar os operários que construíram a nova capital, ele pediu a todos o reconhecimento "a três personalidades que realmente tornaram viável a ideia de, num prazo extremamente curto, criar a nova capital."



E fez a ousada citação: "Inicialmente, como todos têm no espírito, o presidente Oliveira, como era conhecido, então, em Portugal. Eu acho extremamente simpático". Deu-se outro estremecimento nos corações e mentes. "O Senado, onde não se pronunciava o nome de Juscelino desde que fora cassado, veio abaixo, aplaudiu sem parar, emocionado, por bem uns cinco minutos ininterruptos! Inesquecível", relembra Maria Elisa Costa.

Prosseguiu o arquiteto em suas homenagens: "O segundo, o arquiteto Soares para homenagear o pai de Oscar Niemeyer. Finalmente, o engenheiro Pinheiro, que, desprendido do prenome bíblico (Israel) parece até outra pessoa. Essas três personalidades excepcionais fizeram Brasília". A cada nome citado foi interrompido por uma onda de aplausos. Era um seminário, parecia uma catarse política.

As conferências e debates se prolongaram por cinco dias - 5, 12, 13, 19 e 21 de agosto - , mas Lucio Costa participou apenas da primeira sessão. Na noite de terça-feira 7 de agosto, embarcou de volta ao Rio. Embora o senador Cattete Pinheiro insistisse, o criador do Plano Piloto não aceitou que ele o acompanhasse até o aeroporto. O embaixador Wladimir Murtinho e Athos Bulcão levaram-no ao embarque. Encaminhado à sala VIP, Lucio Costa observou que o ambiente era de penumbra. Preferiu ir para o terraço, "onde há mais luz e mais espaço". E, lá de cima, comentou o efeito feérico das luzes azuis que demarcavam a pista.

Ainda no início de sua conferência, no dia anterior, Lucio Costa havia afirmado que aquela seria a sua "última visita a Brasília". Foi o dito pelo não dito. O arquiteto voltaria à cidade mais sete vezes.