postado em 23/06/2015 11:10
Que ninguém caia na besteira de perguntar para Ignez Gomes Carrara, 90 anos completados hoje, se ela ;ainda; dirige. Da última vez que os quatro filhos se reuniram para, solene e suavemente, sugerir à mãe que arranjasse um motorista, ela sacou a carteira de habilitação de dentro da bolsa e respondeu: ;Olhem aqui. A autoridade, o Detran, disse que estou apta a dirigir até 2017;. Assunto encerrado.
Pouco mais de seis meses atrás, separada do marido havia muito tempo, convocou uma reunião com os quatro filhos, Thaís, Luiz, Marcos e Rachel ; ;sem noras nem genros;, avisou. Estava se recuperando de uma queda na qual fraturou o ombro esquerdo. E anunciou à prole: vou vender esse apartamento (na Asa Sul), para evitar o aborrecimento de inventários, vou dividir o patrimônio entre nós cinco e vou me mudar para um flat. Sozinha. Ponto. ;Você não está nos consultando. Está nos comunicando;, resumiu a mais velha, Thaís.
Pouco mais de seis meses atrás, separada do marido havia muito tempo, convocou uma reunião com os quatro filhos, Thaís, Luiz, Marcos e Rachel ; ;sem noras nem genros;, avisou. Estava se recuperando de uma queda na qual fraturou o ombro esquerdo. E anunciou à prole: vou vender esse apartamento (na Asa Sul), para evitar o aborrecimento de inventários, vou dividir o patrimônio entre nós cinco e vou me mudar para um flat. Sozinha. Ponto. ;Você não está nos consultando. Está nos comunicando;, resumiu a mais velha, Thaís.
Há seis meses, Ignez mora sozinha num flat de quarto, sala, varanda, cozinha americana e banheiro. Com vista privilegiada para o Brasília Palace Hotel e para os casamentos que continuamente ocorrem nos jardins do monumento modernista. Quando chega em casa à noite, cansada de mais um dia de muitas atividades, enche uma taça de vinho canônico (daqueles que os padres tomam durante a eucaristia) e fica na varanda beliscando um queijinho, um biscoitinho e convidando os beija-flores para participar da santa ceia de Ignez.
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O Gol branco, com o adesivo do Botafogo, tem vida quase tão agitada quanto a de Ignez. Passa o dia cortando o Plano Piloto, do Setor de Clubes Norte ao Hospital de Base, à Asa Sul, à Asa Norte, aos shoppings, a qualquer lugar que é preciso ir para resolver uma pendenga de um filho, de um neto ou de um bisneto. ;Mãe, você procura;;, repreende a mais velha, tentando de algum modo controlar o bicho-carpinteiro.
Com o marido, o eletrotécnico Luiz Gonzaga de Alcântara, e três filhos, chegou a Brasília em 1959. Morou numa casa de madeira do DFL (pronuncia-se defelê), na Vila Planalto, depois na Asa Norte, na Asa Sul e no Lago Sul. Ignez Carrara exerceu cargos importantes do Executivo do Distrito Federal. ;Nem sei se mereci. Mas era dedicada e sempre me dei muito bem com as pessoas;, diz, num gesto de despretensiosa humildade. A inquietude é de nascença. Adolescente nos anos 1940, costurou ela mesma um maiô duas peças e foi à piscina do Sport Club Juiz de Fora. ;Era branco de listras vermelhas. Molhou e ficou transparente!”. A sociedade mineira não acusou a ousadia.
Jogadora de vôlei, participou de competições mesmo depois de casada, outro gesto impensável para os anos pré-maio de 1968. Em Brasília, passou em segundo lugar num concurso público graças à habilidade de datilógrafa. ;Hoje, fico catando milho nesse negócio; e aponta para o notebook branco, de tela grande, empinado na mesa da compacta sala.
Voluntária do setor de psiquiatria do Hospital de Base, Ignez dá atenção para os pacientes desnorteados. ;Ninguém gosta, tem medo. Mas não tem perigo. Fico com pena das velhinhas. Também ajudo a fazer enxovais para filhos de mães carentes numa igreja e antes trabalhava com a Conceição (Moreira Salles, da Biblioteca Demonstrativa de Brasília, morta em 2012). Antes da queda, Ignez fazia tai-chi-chuan e, antes do tai-chi, academia. Hoje em dia, faz caminhadas e dá umas pedaladas no conjunto de flats onde mora, à beira do lago.
;Quer encontrar minha mãe? Vá à casa dela;, brinca Rachel, a caçula, a que mais insisti em ser cuidadora de uma mãe que não quer ser cuidada, não ao modo velhinha. ;Mãe, por favor, me deixa ajudar;; É Ignez quem ajuda. Desde que se aposentou, há quase 30 anos, se dispõe a ciceronear netos e bisnetos. ;Sei a luta que é trabalhar e cuidar de filho.; A aniversariante fez mais: cursou direito aos 47 anos.
Sempre tão disposta, Ignez é convocada para resolver pendências mil. ;Vó, vai lá à UnB pegar um certificado pra mim.; E lá vai ela para a fila cheia de meninos com um quarto de sua idade. Não poucas vezes, saiu de casa de madrugada para buscar netos nas festas. ;E ela sabe os caminhos como ninguém. Vai por aqui, por aqui, vira ali;, conta Rachel.
Quando chegou a Brasília, antes da inauguração, com o marido e três filhos, Ignez arrumou a família para a primeira visita à Cidade Livre. As crianças, de sapato e meia branca; ela, de salto alto. ;Menina, que mico! Quando chegamos, tinha índio, homens com sacos nas costas, e todo mundo nos olhando. Voltei para casa, guardei tudo aquilo. Comprei no mascate uma calça de brim e umas botas, e tudo ficou resolvido.;
Essa capacidade executiva move a vida de Ignez, da hora que acorda à hora que vai dormir. Sabe de cor os números de celulares, seus e dos filhos. O CPF está na ponta da língua. ;Se eu for anotar no celular, não vou conseguir achar.; Terá medo da morte, a noventona superativa? Faz-se um silêncio rápido: ;Não quero morrer ainda não. Esqueço isso, penso que vou viver a toda. Tenho a impressão de que a minha família vai sentir muito;. Até hoje, as amigas perguntam: ;Você não acha ruim morar sozinha, não tem medo?;. Há sempre uma garrafa de vinho canônico para espantar as sombras da incerteza.
Mas, por esses dias, Ignez está de dieta. Quer perder alguns quilinhos até 4 de julho, dia da festa de 90 anos, no Iate Clube. Na semana passada, comprou um body (;um macaquinho;) para afinar a silhueta. Boa parte da família que mora fora de Brasília já confirmou a presença. O vestido cola no corpo e tem renda nos braços, no colo e nos ombros.