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No quadradinho riscado no mapa, a poeira vermelha cobria tudo e todos nos idos de 1950. Bem poderia ser um protesto silencioso da terra recém-desnuda de cerrado: era imperioso arrancar árvores para dar lugar aos palácios de Brasília e abrir caminhos. Indiferentes à hostilidade do tempo e à precariedade das poucas estradas de chão, dia e noite centenas de caminhões iam e vinham carregados de tudo o que se pode imaginar: de gente, de bicho, de madeira, de cimento. Até de esperança por uma vida melhor. As máquinas tiveram fundamental importância para a construção da nova capital. E ainda têm.
Aos olhos de milhares de pioneiros que chegavam para trabalhar no imenso canteiro de obras de onde brotou Brasília, o cerrado tinha cor de sangue. ;Desde o local onde fica a Rodoviária do Plano Piloto até onde hoje é o Congresso Nacional era pura terra vermelha; lembra o caminhoneiro Jaime Sampaio dos Santos, 73 anos. Baiano, Jaime chegou a Interlândia (GO) em 1952, com o pai, marceneiro, para fugir da seca.
Assim que Juscelino Kubitschek anunciou a construção da nova capital, não pensou duas vezes. Aos 18 anos, já estava com as mãos no volante, transportando pedregulhos para dar forma aos edifícios de Brasília. Naquele tempo, dar um telefonema era algo quase impossível. Jaime lembra-se de ter dirigido por seis meses pelas rodovias brasileiras sem conseguir contatar a família. ;Sabiam que eu estava vivo apenas pelos amigos que regressavam ao DF. Não tinha outro jeito. E, como sempre morei dentro de um caminhão, era como se já estivesse em casa.;
Nem todos os caminhoneiros compartilhavam do ideal de JK - assim como parte da população brasileira. Menos ainda acreditavam na promessa de construção de uma cidade no meio do nada. Crédulos ou descrentes, chegavam com a certeza de que fariam dinheiro. A fortuna veio para poucos, é verdade. Mas o caldeirão que cozeu Brasília tinha um tempero que pegou de jeito os forasteiros, do volante ou não. E muitos fizeram da cidade sua morada.
A presença marcante desses profissionais no canteiro de obras está registrada em fotos amareladas pelo tempo nas pastas do Arquivo Público do Distrito Federal. Existem veículos de diferentes tipos enfileirados no meio do nada. Motoristas orgulhosos do alto da boleia. As estradas parcialmente abertas e os esqueletos dos prédios públicos em segundo plano não deixam dúvida do papel do caminhoneiro na construção da cidade. Nenhuma delas tem identificação sobre os locais exatos ou quem são os personagens que ajudaram a construir a história.
Passados 55 anos, o caminhão continua presente nas ruas da cidade, mas já não reina absoluto como nos velhos tempos. Agora, os 22,8 mil existentes disputam espaço no trânsito caótico com 1,5 milhão de veículos. Faltam estatísticas no DF sobre quantos deles fazem o transporte de carga. No Brasil, há 848.772 registros de transportadores autônomos e um total de 1.009.860 veículos cadastrados na Agência Nacional de Transporte de Cargas (ANTT). Na busca pelo resgate da histórica participação dos caminhoneiros na construção de Brasília, a reportagem percorreu os quatro cantos da cidade em busca de homens e mulheres da velha e da nova gerações de caminhoneiros que fizeram e continuam fazendo história na capital do país.
Temperando a vida
A respiração lenta não atrapalha a vontade de contar histórias de quem fez a vida graças ao movimento dos caminhões. Na boleia de um deles, a cozinheira Maria José Alves chegou a Brasília em 1957. Foi na beira do fogão, preparando a comida para os caminhoneiros, que ela criou os oito filhos. E lá se vão 42 anos. O restaurante da dona Lili, como é conhecida, continua no mesmo lugar, nas imediações da Fercal, e é famoso entre os profissionais do volante de diferentes cantos do país.
No ir e vir dos veículos de carga, dona Lili viu muita coisa. Como centenas de candangos descendo dos paus-de-arara apenas com a roupa do corpo. ;Eles eram muito conformados com o modo como tiravam o sustento. Mas era triste ver como trabalhavam tanto.; Lili guarda na memória fatos até hoje sombrios da história oficial. Da conversa com um dos motoristas, ouviu relatos que ainda a assustam. ;Havia um caminhão de caçamba que transportou vários corpos para a cachoeira do Paranoá, no massacre da Pacheco (em que a Guarda Especial de Brasília disparou contra operários da Construtora Pacheco Fernandes que reclamaram da comida, em 1959). Lembro-me de o motorista dizer: ;Estou com sono. Passei a noite carregando cadáveres para jogar na cachoeira.;;
O peso do volante
Para o caminhoneiro Roque Helvécio da Cruz, 75, não importavam a poeira, a falta de estradas nem mesmo as dúvidas de que aquele pedaço de chão no meio do Brasil poderia se tornar a nova capital. Nos anos iniciais de Brasília, faltava de tudo. Só sobrava trabalho para quem se dispusesse a trazer nas carrocerias os suprimentos necessários para erguer em concreto as linhas de Oscar Niemeyer.
;Eu carregava tudo o que aparecia: areia, cascalho, brita, terra, produtos de limpeza, asfalto. Não considerava nada difícil;, recorda. Ele chegou aqui como funcionário de uma empresa de mármore encarregada de revestir o Palácio da Alvorada, o Teatro Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Os problemas recentes entre a Cooperativa dos Caminhoneiros Autônomos de Cargas e Passageiros em Geral (Coopercam), da qual Roque faz parte, e o GDF têm feito o profissional sentir o peso do tempo atrás do volante. Os salários de grande parte deles estão em atraso desde o ano passado. ;Isso nunca havia acontecido: um governo que não se preocupa com os caminhoneiros.;
Dia e noite
Passados 60 anos, as lembranças dos primórdios de Brasília ainda fervilham na memória. ;O caminhoneiro foi crucial para a construção da capital. O trabalhador só chegava de pau-de-arara ou no lombo do burro. Até roupa lavada para os ;grandões; da República a gente trazia do Rio de Janeiro;, conta o ex-empresário Gildásio Vilela de Castro, 77, três filhos criados e um neto.
Na década de 1950, quando chegou a Anápolis vindo de Lapão (BA), a BR-020, principal rodovia entre Brasília e Bahia, não existia. Nem a BR-060, que liga Goiânia à capital. O primeiro emprego foi como boy da Expresso Universo, empresa de transporte de cargas da qual se tornou um dos cotistas anos mais tarde. E foi trabalhando no setor que ele viu o Planalto Central se transformar. ;Só acreditei em Brasília em 1956. Chegou um cidadão à empresa e falou: ;Quero o maior caminhão que você tiver. Vou levar madeira para Brasília;;, conta. Gildásio nunca se esqueceu daquele dia. ;O caminhoneiro era um sujeito chamado Osualdo Gonçalves. O caminhão, um Ford Big Job. Ele comprou a carga da Casa Violeta e entregou para a Novacap;, completa.
A nova geração
O avião que dá forma a Brasília está completo. E dezenas de cidades se espraiaram e se consolidaram ao redor dele nos últimos 55 anos. Isso não diminui o vai e vem dos caminhões pelas rodovias do quadrado que delimita o Distrito Federal. Afinal, se até mesmo os pioneiros se mantêm no volante, as novas gerações não viram o trabalho minguar. Atualmente, o obstáculo é o trânsito pesado. ;Antigamente, não tinha esse fluxo tão grande de carros pequenos. Os caminhoneiros conseguiam trabalhar mais focados. A partir das 17h, ninguém anda mais. Em todo o DF é assim,; compara Antônio Carlos de Lima, 41 anos, há 15 na estrada.
Ele faz parte de um grupo de caminheiros brasilienses que só rodam dentro do quadrado. Luzinei Ferreira da Silva, 37, tem o luxo de voltar para casa todos os dias, mas garante que a lotação das estradas é o suficiente para se estressar. ;A gente liga o caminhão às 5h e desliga às 19h ou às 20h. E, mesmo assim, a maior parte dos ganhos vai para pagar diesel, cada vez mais caro.;
Ainda assim, o grupo não pensa em largar o volante. Darci Gonçalves, 50 anos, 32 deles como caminhoneiro, viu a paixão surgir aos 12, quando ajudava em uma oficina. ;Dali, eu soube que era isso o que faria a minha vida inteira. A sensação de estar na estrada é a melhor possível.;
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