Quando percebeu que não havia feito escolhas, mas sofria as consequências, Miguel tentou morrer. Se tivesse conseguido, não o teria feito sozinho. Seria incapaz sem a mão da sociedade que o coloca à margem de tudo que é bom. Por fora, Miguel nem sempre foi Miguel. Quando nasceu, em corpo feminino, sua mãe o batizou de Quésia Carvalho, a contragosto do destino. Miguel era ;todo errado;, como gostavam de dizer. Logo, nenhuma escola seria o lugar certo. Tudo começou a mudar quando um educador transformou o colégio em um espaço acolhedor para todas as pessoas, inclusive e, principalmente, para as que são como Miguel.
Alexandre Magno era coordenador no Centro de Ensino Fundamental 1 de Planaltina (CEF 1), o Centrinho. Percebia a variedade de alunos que estudavam ali. Eram crianças e adolescentes conflituosos sobre sexualidade, machismo, homofobia, racismo e tantas outras questões. Onde existe preconceito, há violência. Os alunos brigavam e chegavam à agressão física. Até que a escola tornou-se espaço de desconstrução. ;As primeiras aulas de 2013 foram fundamentais para que se pudesse entender como alunos compreendiam o que era ser homem e ser mulher na sociedade. Por meio de debates, atividades discursivas, pôde-se verificar que os olhares dos alunos estavam voltados totalmente ao físico, como se os comportamentos fossem todos naturais, onde os corpos ditassem os caminhos a serem seguidos por todos;, descreve Alexandre.
Alexandre buscou conhecimento e inspiração no curso de extensão Gênero e Diversidade na Escola (GDE), da UnB, onde teve acesso a ideias e materiais que serviram como base. Os jovens entenderam a relação entre o machismo e a violência contra a mulher. Estudaram a Lei Maria da Penha e muitos se encorajaram para denunciar agressores. Não eram poucos os casos de meninas que conviviam com espancamentos em casa. Outras aprenderam sobre violência psicológica, que também é crime. Empoderadas, elas passaram a impor seus desejos e direitos no ambiente familiar e escolar. Aos poucos, receberam de volta mais compreensão e respeito dos colegas homens. ;A gente se sente mais poderosa. Quando aprendemos a respeitar, olhamos com bons olhos para as outras pessoas. Começamos a enxergar tudo diferente;, afirma a estudante Fernanda Silva, 16.
Foi preciso superar barreiras religiosas e morais para discutir homofobia. ;Eu tinha problemas com pessoas homosexuais. Não entendia e não tratava bem. A gente falou muito disso nas aulas. Hoje, eu vejo todos como iguais. Fiz amizade com os colegas com essa orientação diferente da minha e vi que não tinham nada de errado. Vejo a escola de um jeito diferente;, diz Lucas Orsini, 16 anos. A escola promoveu debates em todas as disciplinas, sessões de cinema sobre diversidade, levou palestras aos estudantes e os convidou a passeios fora da escola para entender melhor a vida das pessoas com deficiência, as raízes do racismo, as consequências do machismo para a sociedade e tantos outros temas presentes no dia a dia e transformados em tabu.
Muitos pais não gostaram da atividade, principalmente por motivos religiosos. Alguns procuraram a direção para reclamar. Posteriormente, a maioria entendeu que se tratava de um projeto para melhorar a convivência. ;Não era parte dos objetivos do projeto orientar alunos com relação às questões particulares de sexualidade e religiosidade, mas, do conhecimento e da existência de tais questões na sociedade, promover ambiente de respeito e harmonia em relação às diversas realidades existentes na escola;, explicou Alexandre.
Reconhecimento
Em 2013, o Centrinho recebeu o Prêmio Nacional Construindo a Igualdade de Gênero. Alunos, porteiros, faxineiros e professores foram ao Palácio do Planalto receber a honraria concedida pela Secretaria de Direitos Humanos. Ganharam R$ 10 mil. O dinheiro foi investido em material, palestras e passeios do Diversidade na escola. Alexandre Magno foi convidado a trabalhar na Regional de Ensino, que reproduziu a boa experiência do Centrinho em outras escolas. Atualmente, ele cursa mestrado na Universidade de Brasília (UnB) e pesquisa sobre homosexualidade durante a ditadura. Em 15 de outubro, Dia do Professor, o Centrinho receberá uma nova honraria, o prêmio Educar para a Igualdade Racial e de Gênero, do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, em São Paulo. Nas duas premiações, a escola concorreu com projetos de todo o país.
Escolas como o Centrinho estão à frente da maioria. Os estados e o DF aprovaram Planos Estaduais e Municipais de Educação, com metas para os próximos 10 anos. Brasília e sete estados retiraram do texto metas sobre desigualdade de gênero e sexualidade. Optaram por ignorar a diversidade, como se ela deixasse de existir quando é apagada do papel.
Hoje, o Diversidade na Escola faz parte do projeto político pedagógico permanente do colégio. ;Nós nos tornamos pessoas melhores quando passamos a discutir diversidade de gênero. O resultado é o respeito, a aceitação. Os alunos e pais aprenderam que ninguém se torna homosexual por influência. As pessoas nascem como são e precisam ser respeitadas;, afirma a supervisora pedagógica do Centrinho, Lúcia Franco Pedroza.
Miguel Carvalho, hoje com 16 anos, mudou de escola. Ele voltou ao colégio diversas vezes para participar de discussões sobre sexualidade e gênero. ;Antes do projeto, o Centrinho, para muita gente, era um lugar de aprender a fazer baseado. Hoje, a escola é outra e eu me emociono quando vou até lá para falar sobre diversidade. Eu, que tentei suicídio várias vezes por não me aceitar, por não entender por que as pessoas não me amavam, teria sofrido muito menos, se desde o começo tivesse vivido nesse ambiente;, afirma Miguel.
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