Encontrar beleza nas singularidades é tarefa para olhos raros. A sensibilidade da pedagoga Angela Ferreira a fez enxergar mais longe. Ao ver os outdoors de Sobradinho, a professora sentiu falta de pessoas com deficiência representadas neles e no universo da moda. Ela desafiou o padrão de beleza ao promover um desfile inclusivo com estudantes da escola em que lecionava à época, o Centro de Ensino Especial de Sobradinho. Levou cerca de 30 alunos para desfilar na passarela, em um shopping da cidade, como forma de celebrar o encerramento do ano letivo, em 2011.
A iniciativa tomou proporção inesperada. Conquistou a atenção da mídia, passou a se chamar Fashion Inclusivo e os desfiles tornaram-se frequentes. As crianças e jovens abriram semanas de moda em Brasília e outros eventos, até mesmo fora da cidade. ;Na nossa estreia, foi muito emocionante ver mais de 300 convidados aplaudindo a capacidade de pessoas com autismo, Síndrome de Down, paralisia infantil e tantas outras deficiências. A gente não esperava tanto apoio;, lembra Angela. Ela, ao lado dos pais dos estudantes, briga por patrocinio e por oportunidades. No próximo ano, o Fashion Inclusivo vai desfilar no Fórum Mundial de Direitos Humanos, na Argentina. Eles ainda não têm o dinheiro necessário para garantir passagens, hospedagem e outras necessidades para toda a equipe, mas acreditam no sonho.
Hoje, 4 anos depois, o Fashion Inclusivo cresce a cada dia. Ganhou força e transformou a vida dos participantes. Levou o Projeto de Lei n; 1.781 de 2014 à Câmara Legislativa do DF (CLDF), para garantir a representatividade de pessoas com deficiência em campanhas publicitárias de órgãos da administração pública direta ou indireta. O texto prêve que 5% das pessoas em uma propaganda governamental tenham algum tipo de deficiência. O deputado Roberio Negreiros assina a proposição, que está na Comissão de Assuntos Sociais. A intenção é valorizar essas pessoas e garantir a elas campo de trabalho como modelo.
Benefícios
A dificuldade em fixar o olhar e em manter a cabeça erguida não é apenas simbólica para uma parcela das pessoas com deficiência. A depender da limitação física, uma das consequências pode ser a hipotonia (diminuição do tônus muscular e da força). Caminhar com confiança é exercício também de autoestima. Giovanna Pinelli, 6 anos, ganhou mais autonomia, depois de se tornar modelo do Fashion Inclusivo. Sua postura corporal melhorou e os passos tornaram-se mais seguros. A fala também foi desenvolvida, além da sociabilidade e da disciplina adquiridas. ;As mudanças no comportamento da Gigi e os benefícios físicos são muito nítidos. Pessoas com síndrome de Down tendem a ganhar muito peso, o que pode ser ruim para a saúde. O trabalho como modelo ajuda a manter uma alimentação mais saudável, ensina a cuidar do próprio corpo de várias maneiras;, afirma a mãe de Giovanna, Cleo Bóhn, 49 anos.
A iniciativa de enviar um projeto de lei à CLDF sobre a valorização da imagem de pessoas com deficiência foi de Cleo. Giovanna participa de várias seleções e tem conseguido trabalhos como modelo. A mãe preocupa-se em garantir um futuro profissional para a filha. ;No mais recente teste do qual participamos, ela concorreu com 2,300 mil pessoas sem deficiência e ficou entre os 180 escolhidos para fazer parte da agência de modelos. A expectativa é conseguir novos testes, mas a escola é sempre prioridade. Só pode participar do Fashion Inclusivo quem tem boas notas. Já passamos por situação de escolas rejeitarem a Gigi por conta da síndrome de Down e até de alguns pais não quererem que os filhos estudem com ela. Ser modelo é uma atividade que faz muito bem à autoestima;, afirma Cleo.
Yasmin Rodrigues, 6 anos, é companheira de passarela de Giovanna. Ela também tem síndrome de Down. É igualmente vaidosa e gosta de se cuidar. O momento da maquiagem é um dos favoritos da menina, antes dos desfiles. ;O Fashion Inclusivo só trouxe coisas boas para a nossa vida. Até o jeito de andar da Yasmim mudou bastante. A expectativa de viajar para se apresentar em outra cidade, de andar de avião, é muito legal também;, diz Izabel Rodrigues, 43 anos, mãe de Yasmim. Muitas vezes o Fashion Inclusivo precisa brigar para ser aceito. ;Nem todos gostam de ter a nossa presença. A maioria dos lugares não tem acessibilidade e a nossa participação pode gerar trabalho. Já tivemos de erguer modelos em cadeiras de roda com nossos próprios braços. A gente não desiste diante das dificuldades;, relata Cleo Bóhn.
Matheus Shamps, 21 anos, é modelo e se locomove em cadeira de rodas. Participar do projeto o fez sentir mais confiante sobre a própria aparência. O desempenho na escola melhorou e o círculo social aumentou. Há sete meses, Matheus começou a namorar Izabella, 22 anos, também modelo do Fashion Inclusivo. ;Talvez eu não tivesse confiança para abordar uma garota, antes de desfilar. Eu me sinto muito bem comigo mesmo, hoje em dia. Aprendi a me arrumar melhor, a cuidar de mim e dos outros;, avalia. As notas de Matheus, que está no ensino médio, melhoraram depois desse estímulo extracurricular.
Gustavo Mendes, 26 anos, tem baixa visão. Mesmo assim, escolhe as próprias roupas no dia a dia e para os desfiles. ;Peço ajuda à minha mãe para identificar as cores, mas o estilo quem dita sou eu;. Ele estuda publicidade e tem noção dos desafios que encontrará no mercado de trabalho, nessa profissão que exige tanto da visão. Mas aprendeu a acreditar na transposição de limites, apesar das dificuldades, uma lição importante reforçada por Angela a seus alunos no Fashion Inclusivo. ;Ver estudantes e suas famílias acreditando no próprio potencial é a realização de toda uma vida. É muito difícil conciliar escola, fisioterapia, tratamentos e desfile, mas vale a pena. Todo esforço é recompensado;, afirma a professora, que hoje é pedagoga do CED 3 de Sobradinho, onde o projeto continua.
A matéria completa está disponível para assinantes. Para assinar, clique