Adriana Bernardes
postado em 20/09/2015 08:05
;Ela chorava em posição de procedimento. Olhos caídos, queixo no peito, o nariz fungando a parede. O colete preto amoleceu-se com a mãe, atarantou-se com a ordem de algema para trás. Os dedos compridos balançavam uma fralda branca, úmida e amassada pelo choro. ;Está com o cartão de vacina?; Sim. Mas dói tanto, d. Jamila. Eu não pensei que ia doer tanto.;
Foi assim que Gleice Kelly se despediu da filha Rayane na Penitenciária Feminina de Brasília. A garotinha nasceu no presídio. Aos 6 meses, mãe e filha apartaram-se. A história é uma das 50 reunidas em Cadeia ; relatos sobre mulheres, escrito pela pesquisadora Débora Diniz, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília e integrante do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), organização não governamental de pesquisa e ação política.
Para entrar nesse universo, durante seis meses, a pesquisadora esteve diariamente na penitenciária. Obteve autorização para acompanhar os atendimentos feitos pelo Núcleo de Saúde. Não dizia nada. Só ouvia e anotava. O resultado foi uma coletânea de relatos espontâneos de centenas de mulheres. Como não poderia deixar de ser, o livro tem as histórias dos crimes ; alguns brutais, como o da condenada por matar a amante do marido a facadas. A vítima estava grávida. Ela certificou-se de que a criança também não sobreviveria.
Mas também há o lado humano de cada uma delas: as fraquezas, as violências sofridas, as desilusões amorosas, o abandono, a descrença em si mesma. Para o leitor, fica a certeza da ineficácia do sistema carcerário brasileiro em todos os níveis. E, antes dela, uma crítica ao Estado e à sociedade, que fecham os olhos para quem vive à margem de tudo: de renda, escola, família, emprego.
O que despertou em você o interesse por conhecer a história das presas da penitenciária feminina?
Minha primeira pesquisa no sistema ; essa é a expressão usada pelas presas para as instituições prisionais ; foi com os manicômios judiciários, instituições a meio caminho entre presídios e hospícios. Dessa experiência, escrevi livro e fiz filme. Foi daí que comecei a visitar o presídio feminino de Brasília para pesquisas acadêmicas tradicionais ; fiz um censo das mulheres que ali viviam. Identificamos que uma em cada quatro delas veio de unidades socioeducativas de internação na adolescência. Depois de um tempo coletando números e perfis, entendi que precisava de outra maneira de contar as mesmas histórias: aquele era um jargão acadêmico, que falava para poucas pessoas. Importante, é verdade, mas limitado. Foi assim que resolvi ensaiar outra forma de escuta e escrita.
Você tem ideia de quantas histórias ouviu nos seis meses em que frequentou o Núcleo Médico do presídio?
Em um turno no Núcleo de Saúde, são atendidas, pelo menos, 10 presas. Em um dia, no mínimo, 20 histórias. Por aí, vemos que a conta é muito maior que as 50 que contei no livro, se lembrarmos que foram seis meses quase diários. Minha curadoria de histórias acendia a antena para a diversidade e a permanência dos relatos. As crackeiras são muitas no presídio, por isso suas histórias de perdição, abstinência, dentes ou filhos aparecem muitas vezes no livro. Da mesma forma, histórias de avós, que caíram em visitas a filhas, ou de Biscoito, a andarilha que terminou o livro, são eventos únicos.
Como foram as primeiras sensações de dividir um espaço tão pequeno com condenadas ou acusadas de todos os tipos de crimes?
Era o de habitar outro espaço da vida, com outras mulheres e experiências. A sensação era de descoberta, mas também de acanhamento ; como aquele mundo poderia ser tão desconhecido para mim, mas também ser a vida de tantas, mas tantas mulheres no Brasil? O encontro perturbava meu conforto de classe, provocava as certezas de minha intelectualidade acadêmica, desafiava-me sobre como ouvir e escrever sobre o que testemunhava, como a sobrevivência daquela multidão de mulheres.
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