Cidades

Falta de documentação impede acesso de ocupantes a financiamento de terras

O Distrito Federal tem 20 assentamentos e nenhum deles tem o licenciamento ambiental completo

Flávia Maia
postado em 12/10/2015 06:00

Instalados em zonas rurais, longe dos centros urbanos e do olhar governamental, os assentamentos de reforma agrária do Distrito Federal e dos municípios do Entorno estão travados na burocracia. Plantar, colher e sobreviver da terra virou um desafio ; mais por causa dos papéis do que da enxada. Com menos visibilidade do que os grandes acampamentos de sem-terra nas estradas, quem já recebeu a terra parece ficar em segundo plano nas políticas públicas e enfrenta dificuldades, que vão desde a moradia precária até a falta de água para plantar. Embora os 200 assentamentos dessa região ocupem 522 mil hectares ; o que corresponde a uma área equivalente a 90% do território do Distrito Federal ;, a produtividade das culturas nessas terras é baixa e a miséria, uma constante. Em alguns casos, o impasse já dura mais de 20 anos.

Assentamento em Planaltina: divergências entre Incra e Ibram emperram a legalização ambiental

Um dos principais entraves para o desenvolvimento desses assentamentos é o licenciamento ambiental, que demora, no mínimo, um ano. Para se ter uma ideia da morosidade, dos 20 assentamentos do DF, nenhum deles tem todas as licenças ambientais necessárias, segundo informações do Instituto Brasília Ambiental (Ibram). Sem registro formal, os produtores têm dificuldades de acesso ao crédito e de obter as declarações necessárias para participar de programas de incentivo à reforma agrária. ;Os assentamentos são feitos de forma inversa no Distrito Federal. Primeiro, instalam e depois vão atrás de todas as licenças ambientais;, afirma Tatiane Cruz Amaral, gerente de Empreendimentos Rurais do Ibram.

Mudanças constantes na legislação, diferentes interpretações entre os órgãos ambientais e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a falta de pessoal nas repartições públicas estão entre as explicações para a morosidade na liberação dos registros ambientais. No caso específico do Distrito Federal, uma diferença de interpretação deixou o processo mais lento. Em 2013, uma resolução local determinava que, para instalar um assentamento rural, era preciso uma consulta ao Ibram. O órgão deveria elaborar um parecer aprovando ou não o assentamento. No entendimento do Incra, o Ibram daria um parecer, não uma licença ambiental. Valeria, assim, a regra do licenciamento por chácara, e não pelo assentamento como um todo, conforme a legislação federal do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).

Porém, em maio deste ano, a procuradoria jurídica do Ibram entendeu que a resolução obrigava o órgão a emitir a licença ambiental para todo o assentamento, e não para cada fração da terra separadamente. Por isso, o Incra teve que correr atrás para regularizar a situação. ;Agora, estamos com um passivo enorme de regularização ambiental, o que acaba atrasando outros processos;, explica Márcio Hedilberto Cunha Borges, engenheiro agrônomo do Incra e chefe substituto da Divisão de Obtenção de Terras do Incra. Márcio esclarece ainda que o Incra só instala as famílias após conseguir a licença prévia do órgão ambiental. ;A questão é que a dinâmica do processo acaba levando à ocupação. Assim que o Incra tem a emissão de posse, as famílias vão para a terra, antes mesmo das outras licenças;, explica.

Há quatro anos, Gaspar Martins tenta obter crédito. Ele montou uma associação de assentados

Legislação
Para a presidente do Ibram, Jane Maria Vilas Bôas, as licenças ambientais dos assentamentos estão demorando porque o Incra precisa enviar para o Ibram informações sobre os assentamentos a serem licenciados, conforme determina a lei. ;Não é burocracia, é legislação;, afirma. Jane defende ainda que é preciso atenção com o meio ambiente, por isso, o cuidado do órgão. Em municípios do Entorno, como os de Goiás e Minas Gerais, a dinâmica é diferente. Em Goiás, vale a regra do Conama para o licenciamento ambiental e, em Minas Gerais, há legislação própria que prevê o documento para todo o empreendimento.

Enquanto os órgãos batem cabeça, em assentamentos como o Pequeno Willian, em Planaltina, alguns produtores se viram para tirar o sustento da terra, mesmo sem a licença ambiental. Das 22 chácaras, apenas oito driblaram as dificuldades e estão produzindo. O sítio de Gaspar Martins de Araújo, 43 anos, é um exemplo. O assentamento existe há quatro anos e ainda não conseguiu nenhuma linha de crédito do programa de reforma agrária. A saída foi montar uma associação de produtores e tentar outras soluções, como apostar em orgânicos certificados. ;São 200 assentamentos plantando a mesma coisa dos produtores grandes. Esse caminho não é bom. Temos que plantar coisas diferenciadas;, comenta Gaspar.

O grupo também se inscreveu em programas da Secretaria de Agricultura, como o que fornece equipamentos agrícolas e o de Aquisição de Alimentos (PAA). Dessa forma, eles conseguiram máquinas como tratores e vendem parte da produção para entidades mantidas pelo GDF.

Personagem da notícia

Geraldo Justo Silva, 61 anos

Com dinheiro do Pronaf, Geraldo Justo conseguiu comprar 7 cabeças de gado e uma máquina trituradora

O produtor Geraldo Justo Silva, 61 anos, é um homem leal aos hábitos. Pontualmente, às 19h, posiciona-se perto do rádio para ouvir as notícias sobre o Brasil. Sem televisão em casa, o aparelho é o contato com a informação do que acontece além das cercas do sítio de 24 hectares, localizado no assentamento de Itaúna, no município de Água Fria (GO). Há um ano e oito meses, o Correio visitou o seu Geraldo. Na ocasião, o produtor aproveitou a presença da equipe de reportagem e convidou a presidente Dilma Rousseff para almoçar uma galinha caipira. Ele queria contar para ela as dificuldades para produzir nos assentamentos de reforma agrária no Brasil. Dilma nunca apareceu. Mas Seu Geraldo entende que a agenda da presidente anda muito cheia.

Geraldo queria mostrar para a presidente - ;Para ninguém dizer que estou mentindo;, afirma - que, sem água e sem recurso não dava para produzir. ;Enquanto as coisas não estão prontas, não somos assentados. Temos uma terra vazia;, avalia. Para alimentar e matar a sede da família, Geraldo construiu um sistema onde as calhas em declive levam a água da chuva para um reservatório de 10 mil litros. Depois, a água vai para a caixa e abastece a casa. É o próprio agricultor que coloca cloro na água para desinfetá-la e torná-la viável para o consumo. Em tempos de seca, a saída era um caminhão-pipa.

Dilma nunca foi visitar seu Geraldo. Mas a persistência dele rendeu outros resultados. Depois de oito anos, ele conseguiu vencer a burocracia e acessar os créditos do Pronaf. Com R$ 25 mil, comprou sete cabeças de gado, uma máquina triturada de milho e material para cercar o sítio. Do dinheiro com a venda dos animais, ainda conseguiu comprar um bomba para trazer a água do rio mais próximo. Mas a caixa da chuva ainda continua porque, segundo ele, o diesel é caro. O tratamento com cloro continua sendo feito por ele. ;Eu sei que o governo tem muita coisa para fazer, mas é um erro tratar todo mundo como igual, aí não fiscaliza direito e torna tudo mais difícil;, analisa. O produtor garante que já está juntando dinheiro para quitar o financiamento, que dá três anos de carência para início do pagamento. ;Não quero ter constrangimento;, diz seu Geraldo.

O pouco estudo não influencia na sabedoria de seu Geraldo. Antenado com os movimentos políticos e econômicos nacionais, o produtor busca pensar soluções para os discursos de crise. ;Vamos trazer o país para essa casa. O governo é o chefe de família. Se o chefe de família compra chinelos, ele primeiro dá para a mulher, para os filhos e, só depois, se sobrar, pega um. Mas não é isso que está acontecendo. Primeiro, os governantes fazem a cama deles, e o que sobrar fica pra nação. Quando uma pessoa vira presidente ou rei ela deixa de trabalhar para si, para trabalhar para a comunidade;, defende.

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