Cidades

No olhar, levo Tito e Brasília

Leonardo Meireles
postado em 02/11/2015 18:29

Eu sempre fui um crítico racional de Brasília. Para mim, o clima seco, o concreto frio e as pessoas distantes umas das outras eram motivos conscientes de que a cidade não deveria ter sido construída. Não deveria existir. E eu não vim de outro estado, não estou aqui depois de passar em um concurso público. Nasci no cerrado, em Sobradinho. Morei minha vida toda no Guará, estudei na Asa Sul (Objetivo) e na Asa Norte (UnB). Conheci a mulher da minha vida no Lago Norte; um dos meus filhos nasceu em Taguatinga; e hoje vivo em Águas Claras. Sou da geração Brasília e o tempo todo me senti incomodado por não gostar da cidade. Ou achar que não gostava. Até 15 dias atrás.

Meu filho Tito, de apenas 9 meses, não resistiu a uma bactéria muito violenta e morreu. Não, não me veio qualquer nirvana ou inspiração hollywoodiana para mudar minha vida e entender o significado de tudo. Somente uma dor imensa surgiu dentro de mim, da minha família. Um sentimento cruel que carregarei, eu sei, para o resto da minha existência. E que poderia realmente me destruir, não fossem forças criadas em Brasília e que me fizeram resistir.

Em primeiro lugar, a minha família e a da minha companheira, Fernanda. Pais, irmãos, sogros, cunhados, todos se uniram para cuidar da gente e deixar o clima seco um pouco mais aconchegante. Meu outro filho, Theo, de apenas 6 anos, uma cria brasiliense típica, o tal nascido em Taguatinga, é outro motivo para me mover. Um garoto que gosta de piscinas em casa (só em Brasília mesmo...), do Parque da Cidade e de shoppings. Foi aqui também que construí minhas amizades. Pessoas de todos os lugares, classes sociais, idades, culturas, religiões e tendências políticas. Esses seres tão diferentes que se encontraram na capital do país e fizeram parte dos meus 40 anos de existência. Eles me abraçaram, me beijaram, resolveram assuntos, trabalharam no meu lugar, me levantaram. Companheiros deste jornal, no qual passei metade da minha vida, me carregaram no colo.

Teve mais: dediquei, de verdade, pelo menos 15 anos ao Movimento Escalada, um grupo tipicamente brasiliense voltado para jovens católicos. Lá dentro, fiz amigos, conheci Deus, estudei a religião, estendi e entendi a minha fé. Fé essa que também me segurou na minha hora mais escura. Uma fé ; por que não? ; candanga, sólida como o concreto que nos cerca. E me fez lembrar as caminhadas que eu fazia até as paróquias São Paulo Apóstolo e Maria Imaculada, ambas no Guará, em uma época em que andar pelas ruas era mais tranquilo, um gesto tão comum para uma geração que cresceu na década de 1980.

Por falar em 1980, um ícone candango daquele tempo também me embalou por meio da música. Na sexta-feira, pensando pela milésima vez em como seria a vida a partir de agora, Herbert Vianna e os Paralamas do Sucesso cantaram no som do carro: ;Olhos fechados / Pra te encontrar / Não estou ao seu lado / Mas posso sonhar / Aonde quer que eu vá / Levo você no olhar;. Eu sei para quem ele fez a canção, mas, naquele momento, eu me senti mais perto de Tito e de Brasília. Quer eu queira ou não, sempre levarei os dois no olhar. Sempre.

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