Uma ferradura em cima da porta parece pedir por dias com mais sorte na casa da passadeira Geraldina Pereira dos Santos, 53 anos. Moradora da Estrutural, uma das regiões administrativas mais violentas do Distrito Federal, ela fala com orgulho do disco de rap que o filho Josimar Pereira dos Santos havia gravado meses antes de ser assassinado, em 2013. ;Ele sonhava muito em continuar fazendo as rimas. Tanto que os artistas que trabalharam com ele me ligaram para outro CD. Mas eu só pude dizer que ele não existia mais.; Josimar tinha 18 anos e, conta a mãe, havia saído de casa para buscar um pen-drive.
;Eu estava em casa e chegou um amigo nosso dizendo que meu filho tinha sido baleado. Fomos, eu e meu marido, tentar ajudar, mas, quando chegamos lá, ele já estava morto no chão;, lembra Geraldina, resignada. À época, a Polícia Militar definiu o caso como acerto de contas. O jovem levou dois tiros à queima-roupa, ainda tentou correr, mas não resistiu. ;A pessoa que matou meu filho está presa e diz que fez isso por engano. Mas nunca fui chamada para audiência alguma, nunca nos disseram a versão real do que aconteceu e eu sigo sem saber qual o motivo que fez com que eu perdesse o Josimar. Tudo segue ao deus-dará desde 2013.;
As armas de fogo são a causa externa que mais mata jovens negros entre 15 e 29 anos no DF. Estudo da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), intitulado Jovens negros e não negros: mortalidade por causas externas na Área Metropolitana de Brasília, mostrou que, dentre todos os que morreram durante o período avaliado, 80,8% dos negros foram vitimados por armamentos. Dados do Mapa da Violência 2015: mortes matadas por armas de fogo apontam que, em 2012, 59% de todos os óbitos por armas de fogo no Brasil envolveram a juventude dessa faixa etária, entre brancos e negros. Em números totais, esse número corresponde a 24.882 pessoas mortas (brancos e negros) em apenas um ano.
O assistente social Leonardo Ortegal, que atualmente prepara sua tese de doutorado analisando o impacto da cor da pele nos casos de homicídios ocorridos no DF, argumenta que os dados ainda não são capazes de decompor de forma minuciosa como esses assassinatos chegaram a ocorrer. ;A polícia responde por um percentual expressivo das mortes, o que denota sim abuso de autoridade e um alto índice de mortalidade. Mas, em termos absolutos, essa é apenas uma parcela delas;, argumenta. Segundo Leonardo, se essas informações fossem mais específicas, seria possível indicar qual a participação da polícia nos óbitos, bem como quando eles aconteceram entre os próprios jovens, como no caso de Josimar.
;Se é um jovem que mata o outro e há arma de fogo envolvida, há que se pensar qual é o trânsito desse armamento no DF. Esse é só um exemplo do que você poderia obter com essas pesquisas, até para formulação e gestão de políticas públicas para prevenção dessas mortes.; Para o especialista, essas ações devem visar uma política antiextermínio, que envolva um processo educativo para ajudar, inclusive, a juventude a identificar a própria negritude, na tentativa de mudar a percepção da sociedade, que ainda é racista. ;O jovem negro caminha em um campo minado. Se você não tem um processo educativo antiextermínio, que o faça passar em meio às bombas, ele vai padecer no meio do caminho, já que não tem acesso a muitos itens que o jovem branco tem.;
Samuel Estrella, produtor cultural que trabalha com a juventude negra em São Sebastião, acredita que a falta de representatividade política ainda é uma das principais causas da escassez de políticas públicas nas áreas periféricas do DF e do Brasil. ;Temos a bancada da bala, a bancada evangélica. Onde está a bancada negra? Só assim medidas de efeito rápido podem ser tomadas. Você vê escolas de música na periferia? Polos universitários? Centros culturais? Isso sim traz retorno imediato;, argumenta. Negro, ele diz que só teve real noção da cor da pele quando chegou à adolescência. ;Foi quando comecei a estudar no Plano Piloto e fui visto diferente na escola. Já fui seguido muitas vezes por seguranças de shopping;, lembra.
A lembrança de Samuel aponta para outro detalhe no intrincado caminho que leva os jovens negros à morte. Leonardo Ortegal explica que o momento em que o gatilho é acionado é o último nessa rota. ;Se você voltar a história, verá uma série de elementos fundamentais para a chegada do processo de extermínio. Isso faz com que aquele jovem se torne o que chamo de corpo autorizado a morrer.; Para Ortegal, essa história não pode negar o estereótipo incorporado pela instituição policial que transforma garotos com determinadas características em suspeitos.
E, continua o assistente social, quando esse conjunto de jovens que representam esse estereótipo é avaliado, um percentual muito pequeno dele estará, de fato, envolvido no crime. ;Mas esse conceito do trejeito do marginal já é um mecanismo de etiquetamento social daquele jovem. Ele se torna um criminoso em potencial, uma profecia autorrealizável. A sociedade começa a se comportar de acordo com as expectativas que impôs àquele sujeito e isso gera um processo que vai conduzindo esse garoto para o meio do alvo;, completa.
Essa percepção, inclusive, é responsável, em muitos casos, por dificultar a entrada do jovem negro no mercado de trabalho ; um ponto que é usado pelo tráfico para seduzi-los. Bruno Kesseler, presidente estadual da Central Única de Favelas do Distrito Federal (Cufa-DF), garante que os empregadores ainda são taxativos quanto à cor da pele na hora de contratar. E isso é mais intensificado quando o jovem mora em regiões periféricas. ;Por exemplo, se um adolescente da Estrutural chega ao estágio com o tênis sujo de barro, vai sim sofrer preconceito. Se for negro, mais ainda. Além de políticas, é preciso que sejam desenvolvidos projetos que aproximem as classes média e alta dessas comunidades;, argumenta.
Geraldina Pereira dos Santos conta que o filho só estudava. Saía cedo de casa, às 7h, e essa é a hora do dia em que mais sente falta de Josimar. ;Isso não tem cura. Hoje, eu tenho medo porque a Justiça não está se preocupando com um cidadão. Já são três anos e um mês que ele se foi e eu não confio mais em ninguém.;
A teoria
O conceito de profecia autorrealizável foi cunhado pelo sociólogo Robert K. Merton e ocorre quando um prognóstico, ao tornar-se uma convicção, pode causar sua realização. Dessa forma, quando alguém age como se suas crenças fossem reais, o comportamento faz com que ela aja de forma a tornar aquela profecia em algo real.
O jovem negro caminha em um campo minado. Se você não tem um processo educativo antiextermínio, que o faça passar em meio às bombas, ele vai padecer no meio do caminho, já que não tem acesso a muitos itens que o jovem branco tem;
Leonardo Ortegal, assistente social
;Temos a bancada da bala, a bancada evangélica. Onde está a bancada negra? Só assim medidas de efeito rápido podem ser tomadas. Você vê escolas de música na periferia? Pólos universitários? Centros culturais? Isso sim traz retorno imediato.;
Samuel Estrella, produtor cultural que trabalha com a juventude negra em São Sebastião
A estatística do extermínio
82,6% é o percentual de negros entre os jovens de 15 a 29 anos que morreram em 2012 na Área Metropolitana de Brasília, que inclui o Entorno
O volume de jovens negros mortos em 2012 foi 5,1 vezes maior que a de jovens não negros
As chances que um jovem negro tem de sofrer homicídio são 5,7 maiores em comparação ao jovem branco na AMB
89,6% das vítimas de homicídio por arma de fogo no DF em 2012 foram jovens negros
56,2% é o percentual da população do DF que se declara negra
Fonte: Jovens negros e não negros: mortalidade por causas externas na Área Metropolitana de Brasília (Codeplan)