;Você já se olhou no espelho? Parece uma macaca. Você não é gente, é uma macaca;, ouviu a vendedora Claudenilde Nascimento Chagas, 31, em um bar. ;Macaca. Nega bandida. Preta caloteira;, escutou a cabeleireira Tâmara Martins, 39, no próprio salão de beleza. ;Preto sujo, fedorento e morto de fome;, gritou uma idosa a seu inquilino, no quintal que dividem. A primeira ceifada contra a hierarquização racial no Brasil ocorreu em maio de 1888, com a aprovação da Lei Áurea. Não bastou. Com o passar das décadas, outras políticas públicas surgiram para acabar com os resquícios de uma cultura imbuída de preconceito e segregação, por exemplo, a sistema de cotas nas universidades. Entretanto, mesmo após 128 anos da primeira iniciativa contra a prática, a discriminação persiste de forma cruel na nossa sociedade.
Até o fim de abril, o Ministério Público (MPDFT) ajuizou 52 denúncias de crime racial ; 116% mais do que mesmo período de 2015, quando houve 24 denúncias. Ontem, nove ações penais de injúria racial tiveram julgamento na 2; Vara Criminal de Taguatinga. Na maioria dos casos, os argumentos racistas apareceram após um conflito ; o que confirma a tese de especialistas que a ideia de democracia racial não é bem fundamentada na capital federal. No Brasil, racismo é crime. Se alguém discriminar um povo pela cor de sua pele sofrerá ação penal por um delito inafiançável. Se alguém xingar uma pessoa de ;preto;, por exemplo, será processado por injúria grave (leia Para saber mais).
Claudenilde ficou depressiva por meses a fio. A coragem para recorrer à Justiça cresceu quando a moça ponderou sobre o comportamento racista na sociedade. ;Quando eu tiver meus filhos, quero que sejam pessoas que não perpetuem práticas ruins. As pessoas têm que entender que isso não é comum;, argumenta. Ela não frequenta shows ou bares, abandonou a carreira de promotora de eventos e trocou de endereço. As ofensas surgiram após ela intervir numa investida de um rapaz a uma amiga. Quem estava ao lado, se indignou. ;A gente sabe que existe esse tipo de diferenciação entre pessoas, mas não dessa forma monstruosa;, pondera o PM Alessandro Henrique de Sá Silva, 37, que presenciou as ofensas. Ontem, ela entrou em acordo com o agressor ; um professor.
Rastros do mal
Por pelo menos 40 dias após a agressão, Tâmara não saiu de casa. Precisou de tempo para refletir. ;Eu nunca tinha passado por isso. É um choque que não esperava. É como se a gente fosse lixo apenas pela nossa cor de pele. Por ser negra;, explica. As ofensas partiram do locatário do salão onde ela empregava 15 funcionários, num shopping de Águas Claras. O comércio fechou as portas. ;Tenho três filhos e até hoje não tive coragem de contar para eles. A vergonha é muito grande.;
De empresária bem-sucedida, Tâmara passou a ser funcionária. ;Pelo tempo que precisei para me recuperar do trauma, fiquei fora do mercado, perdi espaço. Isso não me incomoda tanto, mas sim as marcas deixadas na gente como ser humano;, conta. A secretária executiva Ana Ingristy Câmara Batista, 25, presenciou a agressão naquele agosto de 2014. ;Não consigo aceitar aquela humilhação que vi. Temos que gritar: o preconceito existe e faz da vida coletiva pior;, reclama.
Além das nove ações de injúria racial, houve o julgamento de um caso de preconceito com idoso, outro contra nordestino e também um referente a deficiência física. Em quatro ações, houve acordo entre os envolvidos; três recusas (o processo criminal continua); três adiamentos; e dois revogamentos (a ação também segue). Além do pagamento de indenizações por danos morais, o agressor pode prestar serviço comunitário e assistir a cursos de conscientização racial. O promotor de Justiça Thiago Pierobom, coordenador do Núcleo de Enfrentamento à Discriminação do MPDFT, explica que em 50% das ações há acordos. ;As pessoas precisam procurar os seus direitos, sobretudo quando são ofendidas. O dinheiro de uma indenização não paga a ofensa que uma pessoa sofre, mas é importante para o agressor saber que é um ato sério e que o Estado brasileiro não permite.;
Preconceito disfarçado
A desqualificação folclórica da influência negra, o preconceito contra as religiões de matriz africana e o desconhecimento da importância do negro para a formação da nossa cultura servem para manter e perpetuar o preconceito racial. Comportamentos conservadoristas, unidos à sensação de anonimato que as redes sociais na internet proporcionam aumentam o número de casos de racismo e injúria racial. Antes disso, figuras de liderança, como chefes, professores e mães, contribuem para a permanência do preconceito, dizem especialistas.
;Qualquer observador pode perceber que há vários espaços em Brasília em que os negros não podem entrar sem serem vigiados, observados ou segregados. Ainda há o estigma de que o negro tem que reagir de forma subordinada;, avalia Evandro Piza Duarte, professor de direito da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em discriminação racial. Para ele, é necessário investir no processo de mudança de comportamento e na conscientização da sociedade. Segundo o docente, seriam necessários pelo menos 50 anos para a realidade ser mudada.
Denise da Costa Eleutério, presidente da Comissão da Promoção da Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil (subseção de Taguatinga), acredita que houve avanços, mas a mudança de comportamento ainda não ocorreu de forma plena. ;O preconceito é disfarçado. Há muita gente que tem vergonha de denunciar, mas é preciso mostrar que isso não é pontual;, frisa.
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