Cidades

Barreiras fragilizam avanço da inserção profissional de transexuais

Lacuna na legislação brasileira, discriminação na família, diferenças salariais e baixos índices de qualificação deixam transgêneros desprotegidos quando se trata de inserção profissional

Flávia Maia
postado em 16/05/2016 06:10

A estudante Lua Stabile, 24 anos, teme ver o esforço acadêmico diminuído pelo preconceito

;Uma coisa é a sexualidade que você pode camuflar. Outra coisa é aquilo que não há como esconder. Eu tenho uma batalha muito grande, porque quanto mais despercebido eu passar, melhor. Porque isso me livra da violência e do preconceito;. Transexual, Jiulio Gusmão, 26 anos, define sua rotina diária para enfrentar um dos temas mais sensíveis no mercado do trabalho brasileiro: a inserção da diversidade nos ambientes corporativos. Sem legislação de proteção específica, sem dados oficiais sobre transexuais e travestis, o Brasil patina nas políticas de inclusão. O resultado é 90% dessa população em empregos informais ou na prostituição, segundo estimativas da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).

A partir de hoje, o Correio publica uma série de reportagens mostrando as dificuldades e os desafios brasileiros para vencer as resistências de transformar o mercado de trabalho em ambiente diverso e com igualdade de oportunidades. Sem expectativa de emprego formal em Brasília, Jiulio pretende voltar à cidade natal, Tucuruí (PA), caso não consiga colocação até julho. Mesmo graduado em educação física, sua fonte de renda atual é um estágio no Núcleo de Estudos em Saúde Pública da Universidade de Brasília (Nesp/UnB). Porém, ele precisa de uma segurança financeira maior para se manter no elevado custo de vida da capital do país.

No Brasil, afirmar a própria identidade de gênero pode ser um atestado contra a possibilidade de ser empregado formalmente. ;Você tem seu nome social no currículo, faz a entrevista e é aceito. Mas, quando vai passar os documentos e eles veem seu nome de registro feminino, a vaga desaparece;, comenta. Mesmo quem consegue transpor a fronteira de ser admitido em um posto formal, precisa lidar com os preconceitos. Jiulio trabalhava em uma academia e saiu por causa de uma situação de transfobia. ;Sempre que eu chegava, pegava meu copo, colocava meu nome e deixava lá. Quase no fim do expediente, um cliente se achou no direito de riscar um A em cima da letra O. Deu raiva, tirei foto e pus no grupo da academia. Falei que não aceitaria ser desrespeitado.;

Tabus

A identidade de gênero tornou-se um dos principais tabus brasileiros, ao ponto de o poder público não conseguir, sequer, mensurar a população trans. A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República usa informações coletadas na imprensa e por organizações não governamentais para tentar diretrizes de ação. A ausência de dados faz com que o Brasil fique de fora, inclusive, de estudos internacionais sobre a diversidade no ambiente de trabalho. A forte discriminação atrapalha a qualificação do grupo ; muitos são expulsos de casa ainda cedo ; e precisam recorrer à prostituição para sobreviver, o que os deixa ainda mais susceptíveis à violência.

Mesmo nas empresas que abrem as portas para a diversidade, ainda há desafios, como conseguir melhores postos, acabar com as diferenças salariais para as mesmas habilidades e a formação de um ambiente de trabalho respeitoso. ;Perguntaram para um empresário por que ele recomendaria a outra empresa trabalhar com grupos trans. Aí, ele respondeu que, se não fizesse isso, a empresa fecharia em 10 anos, uma vez que o negócio trabalha para a sociedade, e ela é diversa. Homens héteros trarão soluções parecidas para o mesmo problema. Uma empresa diversa terá uma riqueza de inovação;, conta Thaís Faria, oficial de programação da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Sem normas

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A falta de atenção com o grupo coloca o Brasil entre os mais atrasados da América Latina ;o país não faz parte dos 11 da região com legislação específica. A conquista mais recente foi um decreto assinado por Dilma Rousseff permitindo o uso do nome social em órgãos públicas. ;O Legislativo tem sido omisso e isso dificulta as ações de poder público;, lamenta Symmy Larrat, coordenadora-geral de promoção dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

Prestes a se formar em dois cursos superiores ; ciências políticas e relações internacionais na Univeridade de Brasília (UnB) ;, Lua Stabile, 24 anos, teme que todo o esforço acadêmico seja diminuído quando as empresas nas quais houver possibilidade de contratação souberem que ela é transexual. Hoje estagiária na Unaids, a jovem teve receio de não conseguir emprego formal, um dos principais empecilhos para começar seu processo de transição.

;Estou na minha primeira experiência depois de transicionar. Até chegar aqui, pensei muito que não conseguiria estágio, emprego, oportunidade. Mas, quando chegou o momento em que eu não poderia esperar mais, tive aqui um acolhimento que me deu certeza de que poderia fazer isso;, conta. Ainda assim, a estudante se questiona constantemente. ;Esse é um dos principais motivos que fazem com que muitas de nós, pessoas trans, tenham que recorrer à prostituição;, reclama.

Glossário:

Orientação sexual: está relacionado ao desejo da pessoa (homossexual, heterossexual ou bissexual).

Identidade de gênero: É a maneira como alguém se sente e se apresenta para si e para as demais pessoas como masculino ou feminino, ou ainda pode ser uma mistura de ambos, independentemente do sexo biológico ou da orientação sexual (orientação do desejo: homossexual, heterossexual ou bissexual).



Para saber mais:


O Manual da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Direitos LGBT aponta que a resposta para a diferença entre travestis e transexuais tem ;limites bem tênues;. A entidade afirma que é preciso tomar cuidado para não cair no simplismo de dizer que uma opera e outra, não, porque isto não é verdade. No entendimento da ONU, não é o órgão sexual que define o gênero, que é uma construção social e cultural. Muitas travestis utilizam-se de meios cirúrgicos para obterem um corpo feminino, com implante de próteses de silicone e utilização de hormônios, sem com isso mudarem a anatomia do seu órgão sexual. O uso desses dois termos é um fenômeno presente na América Latina, especialmente no Brasil. Em outros países, não existe essa diferença e todos esses grupos são considerados transexuais. Já as pessoas transexuais podem ou não recorrer à mudança do sexo biológico através da cirurgia de transgenitalização e as/os que não fizerem a cirurgia não deixam de ser do gênero a que sentem pertencer. Para a ONU, ;antes de achar que essa diferença faz diferença, o mais importante é respeitar a autonomia dessas pessoas, reconhecendo a identidade de gênero com a qual se sentem mais confortáveis;.

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