Cidades

Cargas necessárias à construção de Brasília chegavam em boleias de caminhão

Cada estrada que surgia era como uma veia aberta para nutrir a cidade

Adriana Bernardes, Flávia Maia
postado em 09/08/2016 06:00 / atualizado em 17/09/2020 11:51

Há 20 anos José das Dores transporta cargas para cá:

O marco zero de Brasília está no Buraco do Tatu, na Rodoviária do Plano Piloto. No Museu Vivo da Memória Candanga, há uma foto de homens em cima de um morro de terra com a estaca fincada no chão e nada em volta. Dali, partiram todas as medições topográficas para dar a forma de avião, libélula ou cruz ; a depender do gosto de cada um ; desenhado pelo arquiteto e urbanista Lucio Costa. Nos relatos de quem coube a missão de fazer o concreto vencer o Cerrado, foram anos de solidão. Um paradoxo quando essas mesmas pessoas narram a rotina no imenso canteiro de obras: o vaivém de milhares de trabalhadores, o comércio, o ronco dos motores dos caminhões carregados de material de construção, de comida e até de gente. O trabalho 24 horas por dia.

Brasília cresceu alimentada pelas cargas vindas nas boleias de caminhões. Cada estrada que surgia era como uma veia aberta para nutrir a cidade. Era essencial abrir pistas e reduzir os tempos de viagens. As obras da capital precisavam acompanhar a pressa do sonho desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek. Brasília seria a identidade de um novo Brasil. E a região central, o símbolo do progresso.

[SAIBAMAIS]JK e sua equipe estavam convencidos de que o futuro do país viria no asfalto. O caminhão ganhava o espaço das antigas carroças. Os trilhos eram importantes. As pistas de avião se abriam em clarões no Cerrado. Um artigo do jornalista Wilson Frade, de 1988, ilustra bem o espírito de JK, que não autorizou a compra de 40 mil enxadas para colonos pedida pelo então secretário de Agricultura de Minas Gerais, Tristão da Cunha: ;Olha, Dr. Tristão, enxada, não; No meu governo, a era da enxada acabou. Mas, se o senhor trouxer aqui um pedido para comprar 40 mil tratores, eu assino;.

Aos 78 anos, Gildásio Vilela de Castro mantém vivas as lembranças daquele tempo. Ele foi um dos transportadores que embarcaram na epopeia Brasília. A Expresso Universo se instalou logo no começo da construção, em novembro de 1956, e, por décadas, ficou entre as maiores do ramo de transporte do país. ;A nossa inscrição na Associação Comercial do Distrito Federal era a de número sete;, conta. Na época, havia quem duvidava do surgimento da capital. Ele mesmo, antes de ver com os próprios olhos, só passou a acreditar quando viu crescer as encomendas na empresa em que trabalhava com destino ao que hoje é o Distrito Federal.

Gildásio Vilela pisou em solo candango pela primeira vez aos 18 anos

Aos 18 anos, Gildásio resolveu ver de perto o que só ouvia de boca a boca. ;Enchi uma caminhonete F350 e peguei a estrada de Anápolis para cá. Quando cheguei, já passava das nove da noite. Lá do alto, onde hoje deve ser a EPNB (Estrada Parque Núcleo Bandeirante), vi aquele tanto de luz;, relata. As luzes avistadas por Gildásio não eram de Brasília, mas da Cidade Livre, hoje Núcleo Bandeirante. Não tinha energia elétrica e a noite era iluminada graças aos motores a óleo diesel, lamparinas ou lampiões. ;Aquilo não parava. Achei que ia descarregar no dia seguinte, mas nada. Eram duas da manhã quando terminamos de entregar a mercadoria e, só depois, fui dormir.;.

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Naquele tempo, Anápolis (GO) era o centro de logística e distribuição. A cidade, fundada em 1907, tinha uma das mais suntuosas e importantes estações ferroviárias do Centro-Oeste. Além disso, abrigava os mascates, com a experiência de comercializar material de construção desde a criação da capital de Goiás, Goiânia, inaugurada em 1933.

A maior parte do material para erguer os palácios chegava pela ferrovia em Anápolis, vinda de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte. Não existiam os ramais das BRs 040 e 050 para a capital. A mercadoria desembarcava de um lado, era armazenada nos galpões da própria estação e, depois, distribuída em caminhões e carroças, que seguiam viagem para Brasília. ;As estradas que existiam eram ;carroçais;. Mas, com Brasília, foi rápido. E, mesmo precariamente, já se conseguia rodar por aqui;, conta Gildásio. Atualmente, a ferrovia está desativada e passa por uma restauração. Os trilhos não existem mais. Restou apenas a sede e a importância histórica.

Sem estradas, os atoleiros eram frequentes. Os Fenemês não rodavam nos caminhos que traziam ao canteiro de obras. As mercadorias eram redistribuídas em caminhões menores, como o Ford 7600 e o Dorge. De Anápolis para Brasília, demorava-se de dois a três dias. De São Paulo a Anápolis, até uma semana. Quando se abriu um braço da ferrovia de Anápolis até Vianópolis (GO), fez-se no fim da linha um depósito improvisado de materiais, com um escritório da Novacap. ;No pátio da ferrovia, armazena-se madeira, cimento, ferro. A gente mandava os caminhões para lá e, depois, para Brasília.;

Os custos de transporte eram altíssimos, como ainda são. ;Mas era uma aventura e todo mundo estava enebriado pela conversa do nosso presidente (JK). O plano dele era bom. E, pra gente, não tinha dia nem noite;, relembra o pioneiro, com saudosismo.

A epopeia não para

Passados 60 anos da assinatura do decreto da criação de Brasília, a capital da República continua a ser construída por homens sentados na boleia de um caminhão. O caminhoneiro José das Dores, 43 anos, faz parte dessa história há mais de 20 anos. Desde 1993, ele transporta cargas que mudam o desenho da cidade. José viu a brita, a pedra e o cimento da caçamba do caminhão se transformarem em importantes obras e monumentos, como a Torre Digital e a Ponte JK. Além de construções estratégicas, como o corredor do BRT (transporte expresso de ônibus) e a duplicação da pista entre o Gama e Santa Maria. Ao avistar os cantos da cidade para os quais levou material de construção, José das Dores define o orgulho. ;Sinto como se cada construção tivesse um pedaço de mim.;

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