Cidades

Do luto aos palcos: viúva transforma a dor em poemas e teatro

A psicóloga Cristina Carvalhedo conta com a ajuda da filha para superar a perda do marido e montar obra baseada em textos próprios

Alessandra Modzeleski - Especial para o Correio
postado em 30/09/2016 22:58

Enfrentar a dor da perda é um grande desafio. Mais cedo ou mais tarde, porém, todos terão de encarar a morte de alguém próximo. Assim ocorreu com a psicóloga Cristina Carvalhedo, de 61 anos. Em 2008, ela se despediu do marido de maneira súbita e precoce. Para curar a solidão e o luto, começou a escrever cartas e poemas para o amado. ;Eu chamava de ;Cartas a um amor distante;. Eu pensava que ele só tinha ido na frente e escrevia como se fosse uma conversa, contando as coisas que eu estava sentindo, vivendo, as mudanças que aconteciam em mim e no mundo;, lembra. Após quatro anos, a filha e atriz, Tatiana Carvalhedo, de 39 anos, resolveu adaptar o conteúdo para o teatro. Assim, nasceu a peça "Poeira;.

A psicóloga Cristina Carvalhedo conta com a ajuda da filha para superar a perda do marido e montar obra baseada em textos próprios

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Como psicóloga, Cristina sabe que a escrita pode ser ;uma forma terapêutica potente de autoconhecimento e superação;, como ela mesma define. O instrumento permite não só um desabafo, uma forma de transportar o que é vivido solitariamente, segundo ela. ;Muitas vezes, nos faltam palavras para expressar o que estamos vivendo, e escrever pode ser um jeito de encontrá-las, mesmo que demore tempo para chegar nelas;, explica. Cristina possuía o hábito de escrever antes da perda. Ela defende que, para algumas pessoas, isso pode ser difícil, mas é preciso buscar outros caminhos, como o desenho.

O projeto para o teatro começou a tomar forma em 2013. Tatiana adaptou as cartas e os poemas da mãe para a dramaturgia e decidiu que o elenco seria composto só por mulheres, inclusive a mãe, e outras não atrizes da mesma faixa etária. ;As cartas tinham uma dramaticidade, tinham verdade sobre um tema tão comum e que afeta tantas pessoas. Eu vi que poderia ser extraída delas a delicadeza necessária para tratar de um assunto tão ordinário;, explicou a filha.

Além de Tatiana, a adaptação do material passou pelas mãos do diretor da peça, Jonathan Andrade, e de mais três atrizes: Maira Oliveira, Lydia Rebouças, Nayla Reis ; as duas últimas presentes na primeira temporada.

Tatiana sugeriu que o trabalho se desenvolvesse por mulheres não atrizes. Segundo ela, a ideia era aproveitar uma ;folha em branco;, porque atores possuem vícios de atuação e as ;não atrizes poderiam trazer uma maior naturalidade para um tema que, muitas vezes, fica piegas;.

A mãe confessa que atuar se tornou um grande desafio. Revelou que apenas na escola teve contato com o teatro e a ajuda do diretor foi essencial para o resultado final, obtido após mais de um ano de ensaios. Jonathan destacou o processo de descoberta para as atrizes. ;Eu fiz uma preparação intensiva com elas. Isso envolveu as ações, a naturalidade, as emoções, o texto, a palavra, o olhar, a respiração;, enumerou. Nesta segunda temporada, atuam, ao lado de Cristina, Nayla Reis, psicóloga, e Solange Cianni, pedagoga.

Jonathan conta que, na peça, o público adentra o universo poético de uma casa em mudança, que está se reconstruindo, com roupas no chão, livros e caixas abarrotadas de lembranças. ;O público lida com os sentimentos das personagens e acompanha a travessia dos dias de quem enfrenta o luto;, relata. ;Cada uma dessas mulheres traz uma forma de viver o luto. Nós usamos a morte para falar da vida. É uma jornada de superação. A dor nasce, mas não se pode ficar nela. É preciso de força para seguir;, completa Cristina.

Serviço


Este é o último fim de semana do espetáculo em cartaz, no Espaço Cena, da 205 Norte.
Sexta (30/9) e sábado (1;/10): às 21h
Domingo (2/10): às 20h.
Ingressos: R$ 40 (inteira) - Bilheteria do Espaço Cena ou pelo telefone (61) 3349-3937
Endereço: CLN 205, Bloco C, loja 25


Carta da Cristina que inspirou o nome da peça ;Poeira;:

Meu amado,
Aconteceu.
Tudo silenciou-se.
A tua ausência
tomou conta das horas
Espantei-me com a velocidade
e agilidade de Cronos.
E cansei-me.
Agora, vou dormir.
E amanhã,
eu sei que vai doer
e depois
e depois
ainda vai doer.
Até que um dia
não doa mais.
Tudo vai passar.
Cronos é soberano.
Um dia,
tudo isto,
todas estas coisas,
estes sentimentos,
estas miudezas,
estas imagens
não irão significar mais nada.
Pois,
nem mesmo nós
estaremos lá
para relembrá-las.
Daqui a 100 anos
tudo será
poeira no tempo.
Estrelas?


OUTRO POEMA:


Ele adorava gravatas.
Bonita esta gravata, né?
Foi a última coisa que eu ouvi dele.
Uma gravata furta-cor.
Eu ouvi distraída a sua última frase, enquanto tomava um café e ria.
Andava distraída que mal o olhei, mirando um futuro que não veio.
Depois...
Retornei a esse lugar muitas vezes, imaginando poder contar uma outra história.
Eu o olharia, ele vestiria a gravata, me daria um beijo, sairia de casa, retornaria à noite, eu tiraria a gravata, faríamos amor e poderíamos rir dos nossos dias.
Mas não.
Ali, na última frase, nosso último riso.
Procurei muitas vezes a música dessas palavras em algum lugar dentro de mim. Bonita esta gravata, né? Bonita. Gravata. Esta. Não é?
A cor fugiu
A vida furta-cor desapareceu.

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