Era 2009. Conceição Ferreira Cavendish, hoje com 84 anos, apresentava sinais, cada vez mais constantes, de esquecimento e repetição de frases. Acontecimentos anteriores como, por exemplo, uma dificuldade em memorizar a senha do cartão com a data de nascimento da filha mais velha, despertaram na primogênita, Maria Inês Cavendish Schimmelpfeng, a necessidade de investigar a fundo o que estava acontecendo com Conceição. ;Foi chocante, para mim, quando ele (médico) perguntou em que dia, mês e ano estávamos e minha mãe não soube responder;, conta Inês. ;Ela voltou para 2002.;
Segundo a filha, essa é uma história comum. Talvez mais uma em meio a milhões de outras semelhantes. ;Mas o que acontece com a gente acaba sendo único;, afirma a administradora de empresa aposentada, hoje com 60 anos. Foi assim que Inês introduziu humildemente o seu relato de convivência com a doença de Alzheimer da mãe. Hoje, a administradora lança o livro E...Se eu tiver Alzheimer, na tentativa de compartilhar a experiência, de revelar o dia a dia do paciente e da família, além das explicações médicas. No entanto, a publicação vai além. É uma escrita para Inês, para acalentar o coração, responder questionamentos e socorrer angústias do passado, do presente e do futuro.
A narrativa de Inês e Conceição começa a ser desenhada em 2002, ano em que Jorge Pessoa Cavendish, patriarca da família, sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC) e, mesmo após quatro cirurgias, não se recuperou. Pelo contrário, desenvolveu um quadro de demência. ;Isso virou de ponto a cabeça a rotina da minha mãe.; E de toda a família. Logo no hospital, antes de entrar para o centro cirúrgico, o pai entregou à primogênita a carteira, os óculos e o relógio. Mal sabia que, naquele momento, tinha entregue toda a vida dele e da mulher.
Foram cerca de cinco anos após o AVC que surgiram os primeiros indícios da doença neurodegenerativa de Conceição ; ou até os sinais despertarem a preocupação dos familiares. Muito envolvida com os cuidados do pai e da casa dela e dos pais, Inês, num primeiro momento, imaginou que as reações da mãe vinham de seu temperamento e do momento difícil pelo qual estavam passando. Além disso, em 2003, a matriarca passou por uma bateria de exames neurológicos que não identificaram alterações. ;Isso, de certa forma, mascarou o Alzheimer, porque todos os resultados foram positivos;, relembra.
A descoberta
Dois momentos marcaram de maneira emblemática o diagnóstico de Conceição. O primeiro foi a pergunta do médico, em 2009, e o outro, uma consulta, na qual a filha entrou primeiro no consultório para conversar com o especialista e relatar o dia a dia da mãe. A matriarca ficou com a recepcionista, mas disse que daria uma volta no corredor e sumiu. Horas depois, ela foi encontrada na W3 Sul, próximo a uma parada de ônibus. ;E se ela tivesse entrado num ônibus? Pego um táxi? Foi um choque;, descreve Inês. A primogênita também recorda do temperamento desconfiado de Conceição, das perdas no tempo, dos delírios. ;Ela insistia que o meu pai era o meu avô e falava que o marido dela tinha lhe abandonado. Voltava sempre nessa história. Um dia me bateu o desespero e eu saí de casa, fui em uma floricultura, encomendei umas rosas e escrevi um cartão, como se fosse meu pai, dizendo que estava internado e logo voltaria para casa. Quando batia a aflição, sempre inventava algo;, relata.
O diagnóstico no cotidiano da família foi ingerido gradativamente. A cada dia, surgia um desafio. ;Os 12 anos de dedicação exclusiva aos cuidados dos meus pais foram como atravessar um deserto sozinha;, compara Inês. Em 2014, Jorge faleceu e a primogênita reconheceu que a carga que decidiu carregar estava pesada demais. Pediu socorro a uma das irmãs, que foi morar com a mãe. Hoje, a doença já está em estágio avançado. Conceição não consegue mais encontrar as palavras, mesmo tendo a certeza que está se comunicando. ;Tentamos adivinhar o tempo todo o que ela quer. E ;me ensina; passou a ser a frase que ela mais fala;, conta Inês. Durante todos esses anos, a união e a comunicação da família exerceram funções fundamentais para sustentar o alicerce que Jorge e Conceição construíram no casamento e na criação dos seis filhos.
Apesar da dor e do sofrimento, das dúvidas e das angústias, a doença de Alzheimer resgatou um laço que estava solto e desamarrado. A relação entre Conceição e Inês sempre foi difícil e marcada por divergências, mas um novo olhar passou a prevalecer entre as duas. ;Queria protegê-la, mas me sentia amordaçada.; Aos poucos, a descoberta do diagnóstico inverteu os papéis e fez Inês redescobrir o amor materno. ;Vejo a vontade dela em me beijar e me abraçar. Hoje, ela me chama de mãezinha.; Em um dos trechos do livro, a administradora agradece a oportunidade de receber um sorriso, um beijo e um ;minha filha; nos poucos lampejos de lucidez da mãe. ;Agradecer a chance de me reencontrar com minha mãe, sentir um amor profundo por ela, mesmo que ela não tenha mais a perfeita ideia sobre quem eu sou. E, mesmo que, como um bebê, não distinga mais a diferença entre ela e eu, mesmo que não consiga identificar mais até onde fica o espaço que ela ocupa e o que eu ocupo. É como voltar lentamente ao seio materno quando, como criança, ela me puxa pela mão e sai andando com certa dificuldade, na minha frente, como se quisesse me mostrar alguma coisa que nunca aparece;, escreve.
Programe-se
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E... se eu tiver Alzheimer?
Chiado Editora
1; edição, setembro de 2016
245 páginas
Lançamento: Hoje
Local: Café Bistrô Maria Amélia ; QI 9/11, Bloco A, Loja 5, Lago Sul
Horário: 19h
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