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Último homem livre condenado à morte foi enforcado em Luziânia

Ainda quando era um arraial, cidade do Entorno foi palco da execução do último homem livre condenado a pena de morte pela Justiça civil brasileira

Renato Alves
postado em 13/12/2016 10:05
O condenado foi enterrado na Igreja Nossa Senhora do Rosário: para historiadores, um castigo a mais, já que ele era livre e o templo só recebia escravos
Luziânia escreveu um triste capítulo na história do Brasil. A última condenação de um homem livre a pena de morte pela Justiça civil brasileira ocorreu na cidade goiana do Entorno, quando ainda era o Arraial de Santa Luzia. Aos 40 anos, o lavrador José Pereira de Souza recebeu a sentença por ter assassinado um barão. O réu era amante, havia seis anos, de Maria Nicácia, mulher da vítima. Para ficarem juntos, eles planejaram a morte do marido. Mas o plano não deu certo e ambos fugiram. Encontrados por policiais, acabaram condenados ao enforcamento.
Seis militares levaram José Pereira e Maria Nicácia da cidade de Goiás para Santa Luzia, em 29 de agosto de 1857. Tendo sido presos na antiga capital do estado (hoje conhecida como Goiás Velho), os réus esperavam o julgamento, que ocorreu no mesmo ano. Condenados, voltaram para Goiás, em 29 de setembro. Presos na cadeia local e sem um tribunal superior, eles apelaram ao imperador D. Pedro II. José e Maria pediram o perdão, poder restrito ao monarca. Caso conseguissem, teriam a morte substituída pela prisão perpétua.

O andamento dos recursos durou quatro anos, até que veio o veredito, em 1861. Maria conseguiu o abrandamento da pena. José, não. Como seria o primeiro caso de enforcamento no arraial, as autoridades tiveram que preparar um espaço para o cumprimento da pena. Escravos levantaram a forca no centro, na área descampada de cerrado que até hoje conserva o mesmo nome. Atualmente ocupado por casas, é onde se localiza o bairro Vila Santa Luzia. Por décadas, esse mesmo lugar era conhecido como Campo da forca.
O corpo do lavrador José Pereira de Souza está na sepultura número 9, que ele foi obrigado a cavar
Todo o arraial acordou cedo em 30 de outubro de 1861. Os moradores estavam ansiosos pelo momento histórico. Eles assistiriam à primeira e única execução oficial do lugar. José Pereira de Souza deixou a cadeia do povoado logo após almoçar. Ele fez todo o percurso, do presídio até a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, acompanhado por uma silenciosa multidão. Dentro do templo, o obrigaram a cavar a própria sepultura. Em seguida, o levaram ao patíbulo, onde se confessou e recebeu a comunhão. Às 13h, o condenado se voltou em direção ao lugar da forca e foi empurrado para a morte.

Sepultura

A Igreja Nossa Senhora do Rosário é a mais famosa construção de Luziânia. Restaurada pelo Iphan em 2011, mantém as características originais, incluindo os túmulos de dezenas de moradores sepultados sob seu assoalho de madeira. Os mortos podem ser identificados pelo número escrito à faca no piso de tábua corrida. A sepultura número 9 é a do lavrador José Pereira de Souza. Ela fica em frente à porta do templo, erguido e frequentado só por negros, até depois da abolição.

No entanto, não há documento nem testemunha que explique a razão de Souza ter sido enterrado na Igreja do Rosário, pois ele era um homem livre. Historiadores sustentam que seria um castigo a mais ser enterrado ao lado de escravos. O tablado de suplício foi demolido logo após a execução, conforme determinava a lei. Já os documentos sobre a execução do lavrador foram queimados, por ordem de um delegado que queria os arquivos da cadeia limpos, para receber novos papéis.

A história da última condenação de um homem livre à pena de morte no Brasil foi recuperada, por meio de alguns documentos e relatos de moradores antigos no início do século 20, pelo professor e historiador Gelmires Reis (leia Para saber mais), principal documentarista de Luziânia. Com a proclamação da República, em 1889, o Brasil extinguiu a pena de morte. As exceções ocorreram na ditadura militar. Caso haja outras, dentro das leis atuais, elas só poderão ser aplicadas durante uma guerra no país.
Corpo suspenso
Também chamado de cadafalso, é uma estrutura de madeira, usada para a execução em público, seja por enforcamento, degolação ou outra forma. Na primeira, o modelo mais comum consiste de um L invertido (ou a letra grega ), em que uma corda é pendurada na parte superior. Ela é amarrada em volta do pescoço do condenado que, após perder o apoio para os pés, tem o corpo suspenso. Ele morre pela quebra do pescoço ou por asfixia.

Segregação
A primeira grande edificação de Luziânia foi a Matriz, construída de 1765 a 1767. Mas só a população branca podia frequentá-la. Com isso, os negros começaram a erguer, em 2 de junho de 1769, a Igreja do Rosário. Os dois templos continuam de pé, mas apenas o dos negros mantém a estrutura original. Ele fica no ponto mais alto da Rua do Rosário, onde se concentram os prédios históricos da cidade.

Para saber mais

Autoridade, historiador, escritor

Gelmires Reis nasceu em 14 de julho de 1893, em Luziânia. Em 1910, começou a trabalhar na tipografia do semanário O Planalto. Depois, mudou-se com a família para o sítio Aroeira, na fazenda Catalão, dedicando-se à lavoura e à criação de gado. Em 1913, seguiu para Bonfim, atual Silvânia, para estudar como interno. Três anos mais tarde, o presidente da República, Wenceslau Brás, o nomeou tenente da Guarda Nacional.

Como funcionário público, exerceu os cargos de professor municipal; escrevente do Cartório do 1; Ofício; juiz municipal; conselheiro municipal; promotor de Justiça; escrivão do Cartório de Órfãos; coletor municipal de Vianópolis; delegado municipal do recenseamento, aposentando-se como promotor público e professor da Escola Normal de Luziânia. Ainda foi intendente municipal de Luziânia de 1; de novembro de 1927 a 24 de novembro de 1930.

Como empresário e jornalista, Reis fundou a revista Planalto (com publicação mensal por 10 anos) e o jornal Folha de Luziânia. Ele também publicou obras como História de Santa Luzia (1920), Efemérides goianas (1925), Dez contos desordenados (1947), O Pombo branco (1948), Páginas da roça (1948), Efeméri des Brasiliana (1960) e Luzianidades (1969). Ocupou a cadeira n; 12 da Academia Goiana de Letras. Gelmires morou em um casarão centenário, em Luziânia, com a família, até a morte, em 11 de novembro de 1983.

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