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Descaso do governo e de proprietários ameaça casarões coloniais de Luziânia

Apenas 28 casarões, além das duas igrejas bicentenárias, são tombadas em Luziânia. Em 1978, havia 106 construções com importância para a biografia do município. Interesse comercial nos lotes é a principal ameaça

Renato Alves
postado em 16/12/2016 16:46

O abandono e a descaracterização dos casarões revelam o desrespeito histórico na cidade

Luziânia ainda preserva costumes e construções do Brasil Império e do início do século passado. Mais na zona rural do que na área urbana. Os casarões coloniais são cada vez mais raros na cidade goiana, onde estão sendo descaracterizados ou desabando por total negligência dos donos e do poder público. As outrora charmosas ruas de pedra com sobrados deram lugar a lojas populares, casas de arquitetura irrelevante e arranha-céus que causam fortes e irreversíveis impactos ambientais.

Levantamento realizado em 1978 pelo Ministério Público de Goiás (MPGO) e por órgãos de conservação do patrimônio apontou 106 construções com importância para a biografia do município. Outra contagem do MPGO, nos anos 1990, registrou 64 imóveis nessa condição. Em 2003, um estudo da Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira (Agepel) chegou a 28 edificações, sendo sete em situação precária, 13 em estado regular e oito bem conservadas.

O trabalho serviu para o tombamento provisório, por meio de um decreto municicpal, ainda em 2003. Sete anos depois, também por decreto, foi a vez do Governo de Goiás. Porém, as construções centenárias continuavam sem proteção adequada. Algumas, caindo aos pedaços. Diante de tal cenário, o MPGO decidiu, em 2010, cobrar providências da prefeitura. Pediu à Justiça o tombamento municipal, passando à Prefeitura a responsabilidade pela preservação e pela fiscalização.

Casarão colonial descaracterizado em comercial

Em resposta, a juíza Soraya Fagury Brito afirmou que a situação exigia ;um estudo minucioso sobre quais casarões fazem parte da história de Luziânia e distinga os que apenas são velhos pelo decurso do tempo e que não têm relevância na história da cidade;. A magistrada advertiu ;que é responsabilidade do município de Luziânia coibir ;qualquer ato que implique em demolição ou descaracterização dos imóveis, promovendo, ainda, a notificação dos proprietários;.

Concluído tal levantamento, no entanto, nenhuma ação concreta foi adotada pelo Executivo municipal. De lá para cá, pelo menos três construções centenárias foram ao chão. Outras têm as fachadas descaracterizadas por letreiros e placas, como o sobrado que abriga o Diretório Municipal do PSDB. De tanta importância histórica para a cidade, o imóvel é conhecido como casarão Saint-Hilaire, em homenagem ao viajante europeu de tal nome que visitou o então Arraial de Santa Luzia, no início do século 19.

Nem a Casa da Cultura, na Rua do Rosário, é poupada do descaso. O imóvel sofre com infiltrações, o forro ameaça desabar, cupins destroem as janelas de madeira e o acervo não conta com manutenção adequada. Os parcos livros da biblioteca estão literalmente jogados às traças. Os quadros com fotos antigas, os mesmos da inauguração do museu ; na década de 1990 ; ,não receberam identificação e estão expostos aos efeitos do sol e da poeira. Assim como documentos antigos e outros itens.

Demolições

A catalogação feita pelo MPGO não levou em conta todas as casas que, ao menos na aparência, remetem aos séculos 18 e 19. Na última segunda-feira, o Correio contou 43 construções, em apenas quatro ruas do centro de Luziânia, com elementos característicos da arquitetura colonial. A maioria fica na Rua do Rosário e na Rua do Santíssimo Sacramento.

Casarão colonial em mal estado de conservação

O critério que avalia a importância histórica do imóvel não é clara. Sequer é descrito no documento do MPGO ou nos decretos do estado e do município. Casas antigas, com janelões e portas de madeira, foram demolidas pelos donos nos últimos anos, pois não estavam na lista de imóveis tombados. O exemplo mais recente ocorreu em 2016, quando um casarão que ficava atrás da Igreja Matriz foi demolido para dar lugar a uma farmácia.

À frente da Promotoria do Meio Ambiente, Urbanismo e Patrimônio Cultural, Julimar Alexandro da Silva diz que a questão da preservação do patrimônio em Luziânia é um problema insolúvel. ;A Rua do Rosário é o nosso maior patrimônio histórico e cultural, mas o município não quer assumir para si a responsabilidade de preservá-la. Muitos imóveis estão abandonados. Também tem o problema do lixo e da ocupação da população de rua, que, muitas vezes, faz o uso de drogas. O estado de Goiás também não tem interesse na conservação;, critica.

Segundo o promotor, a partir do momento em que um patrimônio é tombado, o proprietário que não tiver condições de arcar com a restauração pode pedir ajuda ao poder público (União, estado ou município). ;Mas a responsabilidade primária é do dono, que pode sofrer punições;, ressalta Julimar. ;O Ministério Público pode mover uma ação de dano ao patrimônio histórico, e o dono pode acabar obrigado a ressarcir a sociedade pelo dano coletivo. Depois, os recursos são direcionados ao órgão público que cuide da conservação do patrimônio, como forma de fazer o recurso retornar à área e ser aplicado com o mesmo fim;, explica o promotor.

Sem fiscalização

Dono de um dos 28 casarões tombados, Geraldo Mangelho Ribeiro, 54 anos, comprou o imóvel em estado precário e desabitado. Para restaurá-lo, ele precisou avisar o representante regional do Iphan, em Goiânia. O primeiro passo foi a aprovação do projeto, que deveria ser feito em consonância com o estilo arquitetônico do centro histórico. O processo também envolveria um eventual acompanhamento durante as obras e uma fiscalização após o término, o que não ocorreu. ;Quando mandei a carta para o Iphan, eles não enviaram uma resposta personalizada. Mandaram uma resposta padrão, dizendo que a gente deveria preservar as características e manter a fachada. O meu gasto para recuperar a casa foi muito alto, tanto que, se eu tivesse erguido uma casa nova, teria gastado a metade;, estima.

Após restaurar o imóvel, Geraldo transferiu o negócio da família ; uma loja de presentes e artigos religiosos ; de um imóvel alugado para a construção histórica. O interior foi todo modernizado, com pisos de porcelanato onde antes era assoalho de madeira, e paredes de alvenaria, uma vez adobe. As janelas foram mantidas como eram, mas precisaram ser renovadas, pois a ação dos cupins e do tempo havia danificado a antiga estrutura.

Lógica invertida

Quando o interesse particular se sobrepõe ao interesse histórico, monumentos como os casarões seculares de Luziânia ficam ao sabor das vontades dos seus donos. Alguns não têm qualquer interesse na preservação da história, preferindo ganhar dinheiro com os enormes lotes que abrigam essas construções.

Autor de vários livros que contam a trajetória da cidade, o historiador Wilter Coelho, 54 anos, atribui ao esforço pessoal de alguns dos donos desses imóveis o que resta de pé entre os casarões. ;A lógica do particular e do poder público está invertida. Praticamente todos os imóveis bem preservados pertencem a particulares que entendem o valor histórico. O interesse comercial é muito grande, muitos dos lotes onde ficam essas casas poderiam receber um prédio de vários andares. O poder público pouco tem feito pela preservação desses imóveis, a não ser pela Igreja do Rosário, restaurada em 2011 pelo Iphan;, observa.

O efeito DF

O acadêmico também critica o modo como se deu a desapropriação de fazendas para a construção do Distrito Federal. ;A antiga Fazenda da Papuda (que hoje abriga o complexo penitenciário, em São Sebastião) pertencia a uma senhora de Luziânia, a dona Neném, que morreu à míngua, esperando a indenização da desapropriação que não veio. É preciso colocar uma responsabilização social em quem fez isso e construiu Brasília;, conclui Coelho.

O prefeito reeleito de Luziânia, Cristóvão Tormin (PSD), diz buscar parcerias com órgãos de proteção do patrimônio, como a Agepel e o Iphan. ;Infelizmente, algumas pessoas não pensam em preservar. É um patrimônio da pessoa também, é individual, e ele pode fazer dinheiro disso;, limitou-se a comentar Tormin, sem apresentar nenhum projeto de tais parcerias que ela afirma ter buscado.


Diários
Augustin François César Prouvençal de Saint-Hilaire (1779-1853) foi um botânico, naturalista e viajante francês. Veio para o Brasil em 1816, acompanhando a missão extraordinária do duque de Luxemburgo, que tinha por objetivo resolver o conflito que opunha Portugal e França quanto à posse da Guiana. Em 1819, ele esteve em Santa Luzia, onde permaneceu alguns dias. Apesar de ter conseguido fazer parte da missão graças a suas relações pessoais, Saint-Hilaire obteve a aprovação do Museu de História Natural de Paris e financiamento do Ministério do Interior. O naturalista deixou o Brasil em 1822.

Registros
O registro mais antigo de um imóvel em Luziânia é justamente da Fazenda da Papuda. O documento encontra-se em bom estado no Cartório de Registro de Imóveis da 1; Circunscrição e data de 1805. No mesmo cartório, também há dezenas de registros de compra e venda de escravos e, também, de cartas de liberdade emitidas por senhores a seus escravos.

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