Cidades

Com 3 milhões de habitantes, filhos de Brasília enfrentarão novos desafios

Eles têm a missão de recriar Brasília. E se reinventar. No ano em que a população do Distrito Federal chegará ao terceiro milhão, um futuro diferente começa a ser traçado pelos pequenos cidadãos que trazem a capital no DNA

Roberta Pinheiro - Especial para o Correio
postado em 01/01/2017 09:30
Eles têm a missão de recriar Brasília. E se reinventar. No ano em que a população do Distrito Federal chegará ao terceiro milhão, um futuro diferente começa a ser traçado pelos pequenos cidadãos que trazem a capital no DNA
Em janeiro de 1960, quatro meses antes da data estabelecida pelo então presidente Juscelino Kubitschek para inaugurar a nova capital do país, Brasília abrigava mais de 60 mil pessoas. Mãos que escreveram, nos canteiros de obras, os primeiros capítulos da história de uma cidade moderna. Mais de 50 anos se passaram e, no decorrer desse tempo, vieram parágrafos recheados de acontecimentos históricos, como o movimento dos caras-pintadas e a cena musical que exportou talentos. No livro brasiliense, diferentes gerações nasceram. Algumas ocuparam órgãos públicos e outras empreenderam e espalharam a marca criada na capital. Em 2017, Brasília atinge, de acordo com estimativas, a linha dos 3 milhões de habitantes (leia Para saber mais). Uma nova população que chega, cada vez mais, com sinais brasilienses. Que histórias escreverão os bebês da geração 3 milhões?
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;Quero que ela conte histórias de pessoas que foram buscar o que desejam;, responde a designer brasiliense Fernanda Mujica, 27 anos. Ela é mãe de Julia Aragão, 7 meses. A menina é uma grande companheira da mãe e já acompanha Fernanda no universo empresarial. Há quatro anos, Fernanda conduz um estúdio de design com a sócia e uma equipe de oito pessoas. ;Queria fazer diferente do que era oferecido pelo mercado. Não só de serviços, mas também de estilo. As agências de publicidade falam do trabalho como sinônimo da vida e eu vejo o trabalho como pedaço da vida;, conta. Inicialmente, a ideia era criar uma empresa que atendesse organizações não governamentais, mas Fernanda viu uma demanda de empreendedores da cidade que almejavam fazer algo a mais em Brasília. Hoje, esse é o grande público do estúdio.

Para ela, Julia será de uma geração ainda mais independente e autônoma. ;Acredito que eles não vão querer sentar em uma mesa e trabalhar formalmente. Vão fazer horário, produzir de acordo com a demanda e aproveitar muito mais a vida;, imagina. Não à toa, a mãe vê a filha superconectada com as tecnologias. Da mesma forma que as redes sociais surgiram, sem ninguém imaginar, e passaram a definir o cotidiano, outras descobertas virão. ;Fico me questionando como será a cobrança numa vida tão conectada.;

Tecnologia

A advogada Isabella Andrade, 34, também se preocupa com o desenrolar dos avanços tecnológicos. Contudo, anseia que a filha Cecília, de apenas 2 meses, aproveite Brasília como ela desfrutou. ;Espero que ela seja mais parecida com a minha geração, mais desconectada e voltada ao lúdico. Brinque na rua, com os amigos do prédio. Uma convivência saudável que eu e o pai dela tivemos.;

Isabella reconhece as vantagens e as facilidades proporcionadas pela modernidade, mas avalia que hoje não há um limite. Também destaca o aumento da violência como algo que tem influenciado uma mudança de comportamento entre as crianças e os jovens. Na época em que morava no Guará, as brincadeiras de rua eram rotina. As amizades vinham fácil. ;Hoje, mal conhecemos os nossos vizinhos. Andamos indiferentes, na defensiva. Se a gente não mudar nosso pensamento, vai ser um pouco pior;, avalia.

Em 57 anos, a capital do país teve muitas caras. Dos pioneiros e candangos, da geração do rock, dos funcionários públicos e políticos, que hoje assumiram cargos de comando da cidade, e de uma juventude empreendedora, criativa, inquieta e determinada a retomar e ocupar espaços de Brasília. ;Vejo que somos brasilienses querendo mudar a realidade e correr atrás dos sonhos;, define a publicitária Fernanda Sterquino, 22. Grávida de Miguel, ela é a primeira da família a nascer na capital. Desde junho de 2015, decidiu abrir o próprio negócio: uma papelaria personalizada. ;Brasília recebeu bem a ideia. Meu público é praticamente da mesma geração que eu. Vendo nas redes sociais e, por lá, os clientes me procuram. Também participo de feiras.;

Os pais apoiaram a filha, mas, preocupados com estabilidade, sempre comentaram sobre a segurança do concurso público. ;Nesse ponto, vejo uma diferença com meus pais. Eles falam sobre o serviço público, mas eu e meu irmão não queremos, não vamos trabalhar com o que a gente não gosta. A gente prefere arriscar;, resume. Para a publicitária, o futuro da capital está justamente nas mãos dos empresários. E Miguel? Se Fernanda pudesse, começaria a passar pelo cordão umbilical a mesma motivação e inquietação para o filho.

No futuro

O sociólogo do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB) Elimar Pinheiro do Nascimento estuda futuro e prospecções desde 1987. Ele pondera que, para pensar Brasília e a geração 3 milhões, é preciso determinar em quantos anos se quer avaliar. ;Algumas coisas mudam com muita rapidez; outras, lentamente. Em 20 anos, o que vai mudar? As tecnologias, o mundo do emprego, o estilo de vida, o conjunto de valores.; Os avanços tecnológicos vão propiciar oportunidades, como as descobertas na medicina, as questões de mobilidade urbana e do ensino a distância. Contudo, também trarão desafios e condições desfavoráveis, como o desemprego.

Nas palavras de Nascimento, será uma população mais do que centenária: saudável e com qualidade de vida. ;Porém, em condições climáticas desfavoráveis;, analisa. Por mais que o sociólogo destaque que a preocupação com o meio ambiente ganhará cada vez mais valor, as mudanças climáticas já estão se efetivando. Além disso, na visão de Nascimento, serão pessoas treinadas para empreender. ;Os volumes de recursos públicos vão diminuir. O peso da economia do Estado como é hoje não vai mais existir.; Por fim, serão brasilienses com mais acesso à globalização. Se, hoje, alguns fazem mestrado e doutorado fora do país, dentro de alguns anos a internacionalização será maior e mais precoce.

O presidente da Companhia de Planejamento do DF (Codeplan), Lucio Rennó, também acredita que os bebês de hoje vão precisar encontrar novas formas de trabalhar, de investir, de produzir renda e consumir. Para ele, a crise fiscal enfrentada pelos estados terá impacto direto no modo de vida das pessoas. ;O peso do Estado, dos cargos públicos e da capacidade de compras e investimentos vai ser menor do que é hoje. Certamente, isso mudará. Com um agravante, a quantidade de servidores aposentados vivendo mais tempo será maior. Brasília vai precisar repensar.; Outros tipos de inserção no mercado de trabalho terão que surgir. ;Isso vai exigir um grande esforço de reorganização da economia brasiliense.;

Para Rennó, a capital que nasceu para ser a sede do governo e o centro administrativo do país tem grande potencial de se transformar em um polo da indústria da tecnologia. ;Com raízes em dados, com o perfil que temos de consumo, com os altos dados de educação, com a restrição da oferta na iniciativa pública e a juventude empurrada para o mercado, existe a capacidade de desenvolver uma indústria criativa, um polo tecnológico;, prevê.

A capital que os aguarda

;Gosto daquela banda, a Legião Urbana;, conta Marcela Carvalho, 13 anos. ;Conheci na escola;, complementa. ;Porque se dependesse de mim, ela não conheceria. Não gosto das músicas;, brinca a mãe da menina, a advogada Isabella Andrade, 34. Entre risos e segurando a pequena Cecília, 2 meses, nos braços, Isabella comenta sobre a relação dos brasilienses com a capital e seus diferentes ícones. Para ela, é importante contar para as crianças, desde cedo, a história da cidade e os capítulos que foram escritos no Planalto Central. ;Não quero que elas achem que a graça está fora daqui. Precisam conhecer sobre o lugar onde moram, sua história, saber se situar.;

Isabella é a primeira brasiliense da família. O pai veio do Maranhão, e a mãe, de Minas Gerais. Na capital, construiu a vida profissional e a própria família. Daqui, não pretende sair. ;Só se fosse por uma questão de extrema necessidade. Sou apaixonada por Brasília;, resume. O amor pelo sonho de Juscelino passou para a filha mais velha. Marcela também se refere à cidade com carinho. ;Acredito que pode prevalecer a ligação com a cidade. Hoje, a gente vê as pessoas mudando as atitudes, esperando menos do governo, de alguém que faça, e fazendo. As mães estão resgatando as brincadeiras de infância com os filhos, buscando os parques, fazendo piqueniques. E, com a Cecília, queremos fazer a mesma coisa. Queremos usar mais as áreas externas de Brasília;, afirma.
Aos 27 anos, a estudante de designer de interiores Letícia Miranda Gomes de Oliveira Ribeiro reconhece a participação dos pais no vínculo que ela estabeleceu com a cidade. ;Eles sempre levaram a gente para passear no Parque da Cidade e nos pontos turísticos.; Letícia sabe também que a capital da sua infância não é mais a mesma, principalmente no que diz respeito à segurança. Contudo, não quer que a filha, Lorena, de 11 meses, deixe de aproveitar as brincadeiras nos pilotis, o foguete do Parque Ana Lídia, entre outras estripulias das crianças brasilienses. ;Temos que fazer a nossa parte, ao participar e estimular. A criança não pode crescer dentro de casa, sem muitas companhias. Quero preparar a Lorena para o futuro. Minha mãe criou a gente com uma certa liberdade e acho que isso fez bem. Fez a gente crescer mais forte, ter mais coragem.;

Mesmo com a pouca idade e ainda engatinhando, Lorena é exploradora e curiosa. Em poucos minutos, descobre o universo que a cerca. Aos olhos da mãe, será com esse ímpeto que ela vai perceber Brasília. E com um diferencial: a informação. ;Ela (informação) está muito acessível. Imagina daqui a 20 anos?;, questiona Letícia. Além disso, para a estudante, a cidade tem resgatado espaços e eventos culturais que estavam perdidos e a tendência é que isso aumente, principalmente, com a geração que está a caminho.
;Meu desejo é que Brasília se torne uma cidade cada vez mais acolhedora e mais dinâmica. As coisas aqui são distantes, não vemos gente na rua. A gente viaja e conhece gente de Brasília que não conhecemos aqui, falta agregar mais;, avalia a publicitária Alexandra Aquino, 29 anos. Para ela, a cidade caminha nesse sentido. ;É uma cidade nova, tem amadurecido. A nossa geração tem visto muita coisa acontecendo nos espaços de Brasília, e acho que a tendência é essa;, acrescenta. Ela é mãe de Isaac, 7 meses, e anseia que o filho encontre uma cidade com melhores estruturas, como transporte público. Contudo, mantenha as características de organização que a tornam única. ;Agregar tudo isso sem mudar, sem crescer muito, sem se tornar uma grande cidade;, conclui.

Dos candangos e pioneiros, a capital da República tem se tornado cada vez mais dos brasilienses. Nos capítulos da história de Brasília, começam a surgir outros nomes ao lado de Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer e Lucio Costa. ;Brasília tem pouco mais de 50 anos. Ainda vai repercutir por muitos anos essa questão histórica, de como surgiu. Acredito, no entanto, que estamos saindo dos clichês, das coisas antigas, para as pessoas que estão fazendo agora. Tem uma elite cultural efervescendo na cidade;, analisa a designer Fernanda Mujica, 27. Julia, a filha de 7 meses, vai saber quem desenhou os prédios da Esplanada dos Ministérios, mas, na opinião dela, também vai conhecer quem hoje recria a cidade.
O presidente da Codeplan também acredita que os bebês da geração 3 milhões terão outras referências históricas, além das que edificaram Brasília. ;Quem nasceu aqui tem um apego grande com a cidade. Algumas figuras vão continuar, mas ainda é preciso construir ou reconstruir outras. Haverá um legado dessa geração nascida em Brasília e que agora está chegando num ponto da vida que consegue trabalhar de forma consciente e organizada;, afirma Lucio Rennó. Cada vez mais, a capital será governada e construída por seus filhos. ;Um processo diferente do que vivemos até agora. Temos aqui pessoas que adotaram Brasília, porque vieram atrás das oportunidades. Elas criaram outra relação;, explica.

Diante do universo nas mãos e tantas tecnologias, para o sociólogo Elimar Pinheiro, a nova população de Brasília reconhecerá a parte simbólica, mas não com a mesma valoração. ;Eles vão saber que é uma cidade planejada, moderna, mas isso não vai ter muito valor, porque vão conhecer outras cidades modernas e até melhores;, comenta.

Entre tantos verbos no futuro para pensar como querem que Brasília receba e acolha os filhos, uma palavra é unânime: segurança. Não apenas no brincar na rua ou debaixo dos blocos, mas também nas oportunidades que há alguns anos brilharam os olhos de tantos pioneiros. Brasília nasceu da determinação de JK. Em cinco anos, edificou-se a nova capital da República e, a cada virada de ano, um novo capítulo se inicia. Histórias que se somam aos relatos das construções, das superquadras e das linhas e concreto. Seja em casa, seja no colégio, para as mães dos bebês da geração 3 milhões, os filhos vão conhecer e criar vínculos próprios com a cidade onde nasceram.


Três perguntas para

Ana Maria Nogales Vasconcelos, professora e doutora em demografia

Qual é o perfil das mães e dos bebês que nascem hoje no DF?
No início do século 21, as mães eram muito mais jovens, com menos de 25 anos. Agora, temos mães mais velhas, superando os 30. Há, portanto, um envelhecimento da estrutura etária no momento de ter filhos, bem como mulheres com maior escolaridade. Isso é muito bom por um lado, porque vemos que as mães têm maior cuidado com elas e com os filhos. A educação da mãe e a sobrevivência da criança estão ligadas.

Onde está nascendo a nova geração?
A maior concentração de nascimento está nas áreas periféricas, de baixa renda. As mães de nível de instrução mais elevado, que residem nas áreas de maior conforto urbano, têm menos filhos. A nova geração vem mais das regiões onde falta infraestrutura e a qualidade da educação é abaixo do que se espera como meta para o DF.

O valor simbólico da cidade terá o mesmo peso para a nova geração?
Temos que trabalhar mais nessa questão dos referenciais de Brasília, da cidade construída para o futuro, modernista. A juventude de hoje que vive em regiões de infraestrutura mais precária não tem essa referência. A cidade é muito fragmentada, segregada. Se essa situação persistir, vamos ter um distanciamento cada vez maior. Brasília está envelhecendo. Mas o processo de envelhecimento é muito mais rápido na área central, se comparado com as áreas de assentamento mais recentes.


Para saber mais

Rumo aos 100 anos

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a população estimada de Brasília, em 2016, é de 2.977.216 pessoas. Segundo a coordenadora dos Bancos de Leite da Secretaria de Saúde, Miriam Santos, no DF, nascem, em média, 3.200 bebês residentes por ano. Um cálculo rápido, seguindo essa previsão, revela que, ao fim de 2017, a cidade terá mais de 3 milhões de habitantes. ;A nossa cidade está envelhecendo, como todo país, e uma característica dessa criança que está nascendo agora é ter uma expectativa de vida de 100 anos;, afirma Miriam. Por isso, a Secretaria de Saúde tem focado em algumas estratégias para essa faixa etária, com programas de aleitamento materno, reforço das unidades de saúde, profissionais de pediatria, médico da família, nutricionista, fonoaudiólogo, fisioterapeuta e todos que podem contribuir para que seja uma geração sadia. ;Dessa forma, também teremos uma menor sobrecarga no sistema de saúde.;

Produção: Alim Cabral
Agradecimentos ao Las Pitangas e DotPaper.

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