Estão querendo roubar das crianças uma das inovações mais generosas de Brasília: o espaço dos blocos embaixo dos pilotis. Na Quadra 102 do Sudoeste e na SQS 312 Sul, os síndicos dos prédios querem proibir as brincadeiras embaixo dos edifícios residenciais. O Conselho Tutelar foi acionado e o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan) se manifestaram. Os moradores se mobilizaram e criaram o evento Brincalhaço para protestar contra a interdição.
Os filhos de uma funcionária pública, que mora na Quadra 102 do Sudoeste, foram advertidos de que, se continuassem a se divertir durante as férias, o apartamento seria multado. Marcela, a mãe dos meninos, cresceu brincando embaixo dos blocos e queria que eles gozassem do mesmo privilégio. Afinal de contas, estavam em férias. Com a época das chuvas, os pilotis são a única alternativa possível para os filhos não ficarem o dia todo trancafiados no apartamento ou dentro dos shopping-centers.
O regulamento de um desses blocos é uma espécie de antiprojeto de Lucio Costa. Vai contra tudo o que concebeu o arquiteto autor do desenho urbanístico de Brasília e especifica o que não se deve fazer nas áreas comuns, como "uso de bicicletas, patins, patinete, prática de jogos infantis ou de bola, brincadeiras infantis, correria, gritaria e aglomerações que atrapalhem moradores e o trânsito livre" do prédio. O objetivo seria "aprimorar a convivência entre os condôminos".
Pilotis são um recurso moderno
Os prédios construídos com pilotis, com o chão livre para a circulação e a fruição coletiva dos moradores, são um dos aspectos mais importantes do projeto urbanístico de Lucio Costa. O pilotis é um recurso largamente utilizado pela arquitetura moderna. Lucio Costa tomou como referência o projeto que ele mesmo havia realizado para a construção do Parque Guinle, em 1940, no Rio de Janeiro, com edifícios limitados a seis andares, chão livre e áreas verdes amplas.
Entretanto, no caso de Brasília, o Parque Guinle se multiplica e se espraia por toda a cidade, transformada em cidade-parque: "Creio que houve sabedoria nessa concepção: todos os prédios soltos do chão sobre pilotis (...), as crianças brincando à vontade ao alcance do chamado das mães;, escreveu Lucio Costa.
O chão livre dos pilotis é um quintal coletivo das crianças brasilienses. A tentativa de privatizar o espaço público é um retrocesso inaceitável. Fere a lei maior do princípio urbanístico que rege o Plano Piloto formulado por Lucio Costa e é um atentado ao espírito inovador e generoso de Brasília. Um dos sons mais agradáveis de Brasília é o das crianças brincando embaixo dos blocos.
Quem está cometendo tal tentativa de privatizar o espaço público é que deveria ser multado. Essa maneira singular de convivência brasiliense precisa ser preservada. Em Brasília, a intolerância chegou a tal ponto que se um bentevi cantar em uma superquadra, alguns moradores ligam para o 190 ou para a Agefis.