Carros turbinados com pintura metálica, motores envenenados roncando alto e uma plateia eufórica formada por jovens ricos e ávidos por diversão. As carangas da moda ; Opalas, Mavericks, Pumas e Chevettes ; se enfileiravam na linha de largada. A disputa tinha de ser rápida. Afinal, a qualquer momento, a corrida proibida poderia ser interrompida pela polícia. Em altíssima velocidade, os competidores cortavam as ruas de Brasília, fazendo ultrapassagens perigosas e arriscando a vida por alguns minutos de glória e entretenimento.
Do fim dos anos 1970 até a década de 1990, os pegas eram uma prática rotineira nas pistas do DF. Mas os bastidores do mundo das disputas automotivas ficaram guardado em segredo até hoje. O Correio teve acesso a documentos do arquivo da Secretaria de Segurança Pública, de 1963 a 1990, que revelam como o Estado monitorava e tentava coibir as corridas ; na maioria das vezes, sem sucesso. Este é o tema da segunda reportagem da série ;Brasília Confidencial;.
A fiscalização das competições era um tema delicado para as autoridades policiais porque muitos dos chamados reis dos pegas eram filhos de figurões da ditadura ou herdeiros de famílias ricas da capital federal. Os relatos das operações da polícia mostram certa condescendência dos agentes diante das corridas. Não só por medo de trombar com algum playboy endinheirado, mas também porque as corridas reuniam até milhares de pessoas, que, muitas vezes, recebiam os PMs com vaias e até pedradas.
Para apreender carros e acabar com a festa, eram necessárias muitas viaturas e um contingente grande de agentes. O escárnio com as autoridades era tamanho que, em muitos encontros, os participantes ficavam nus. Em um dos encontros automotivos, em 1979, os militares identificaram a participação do filho de um delegado. ;O elemento conhecido pela alcunha de Tuta, filho de um delegado de polícia de uma especializada, possivelmente a DRF, foi visto pilotando uma Yamaha 75. Ele seria um dos elementos que participaram do Pega dos Nus;, segundo a descrição de um soldado do Exército.
Um dos points de disputa mais conhecidos de Brasília era a escola Caseb, na 909 Sul. Nos documentos guardados no Arquivo Público do DF e abertos à consulta pela primeira vez, há dezenas de registros de ocorrências e fichas policiais de participantes de pegas ; entre eles, figuras que entraram para o mundo político alguns anos depois, como o ex-deputado federal Wigberto Tartuce, o Wigão, e o ex-senador Luiz Estevão, hoje preso na Papuda. No acervo histórico da Secretaria de Segurança Pública, há menções a eles.
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Tragédia
A documentação também guarda relatórios sobre a maior tragédia decorrente dos pegas da juventude dourada: o atropelamento e a morte da estudante de direito Francisca Fábia Marques. Segundo os relatórios da época, em setembro de 1979, Lauro Pedreira de Freitas, então com 17 anos, atropelou e matou a jovem, ;de família humilde, pai trabalhador em construção civil e mãe costureira;, segundo o registro feito pela Secretaria de Segurança.
De acordo com a ocorrência, repleta de carimbos vermelhos de confidencialidade, Laurinho, como era conhecido, dirigia na W3 Sul, quando teria iniciado um pega com outros dois carros. ;Esses menores estavam promovendo mais um de seus famosos peguinhas, que culminou com a morte da estudante. Os infratores não se preocuparam nem mesmo em prestar socorro à vítima, o que foi feito por um motorista de táxi;, detalhou o documento. Conforme os agentes que fizeram o histórico do caso, a Brasília azul de Laurinho, que morava no Lago Sul, era ;cuidadosamente preparada para participar dos pegas;. O jovem era filho do político baiano Lauro de Freitas.
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Ele chegou a ser preso pelo crime, e as autoridades acreditaram que a repercussão negativa do episódio serviria pelo menos para acabar com as famigeradas corridas automotivas. ;Com essas informações, entendemos, salvo melhor juízo, haver concluído as diligências pertinentes ao caso, acrescentando que os efeitos das providências até então adotadas já se fazem sentir, eis que os famigerados pegas do Caseb não ocorrem mais, certamente em virtude do afastamento do seu mais importante participante: Laurinho;, escreveu em dezembro de 1979 o delegado de Menores, Ary Sardella.
Ledo engano: a moda dos pegas estava apenas começando. ;Com ou sem Laurinho, viva os pegas do Caseb;, desafiava uma pichação grafitada no muro da escola. E as corridas de carros envenenados seguiram à revelia do controle oficial. Em um dos relatórios incluídos nos arquivos está a presença do compositor Geraldo Vandré (leia à esquerda) pela região do colégio. Segundo o relatório do Estado-Maior da Polícia Militar do DF, de setembro de 1979, o músico estava ;em Brasília, como mendigo, parecendo um débil mental. Frequenta as lanchonetes Janjão e Psiu e mantém contato com elementos que participam dos pegas na área do Caseb;. De acordo com os militares, os companheiros atribuíam o estado físico e mental do compositor à atuação dos órgãos policiais.
Para saber mais
História digitalizada
Após quase meio século de sigilo, dossiês produzidos por militares contra estudantes, políticos, líderes sindicais, religiosos e até pessoas comuns, sem qualquer ligação com movimentos contrários à ditadura, se tornaram públicos. São cerca de 100 caixas com relatórios e fotos com informações de 1963 a 1990. Muitas delas com o carimbo ;confidencial; em vermelho e os timbres de diferentes braços do aparato repressivo do estado durante a ditadura militar, incluindo o DOI-CODI. Em 1995, o então governador Cristovam Buarque editou a Lei n; 881, de 6 de julho, determinando que o acervo da Secretaria de Segurança Pública fosse remetido ao Arquivo Público do DF. Foram três meses de inventário até que os documentos finalmente chegassem ao destino. Lá, foram identificados e inventariados. Mas continuaram com acesso restrito. Somente funcionários podiam ler após assinar um termo de confidencialidade.
No fim do ano passado, o GDF publicou edital reconhecendo os documentos da SSP-DF como ;necessários à recuperação de fatos históricos de maior relevância;. O Executivo local deu 60 dias para que os interessados dissessem se gostariam de manter o caso em sigilo. Como não houve questionamentos, o acervo agora está digitalizado e disponível para consulta. Os interessados em conhecê-lo devem ir pessoalmente ao Arquivo Público fazer a pesquisa.