Cidades

Militares perseguiram árabes em Brasília durante e ditadura

Militares no DF aumentaram o cerco a cidadãos de países árabes, como Síria, Iraque e Líbano nos anos 1970 e 1980

Renato Alves
postado em 09/02/2017 06:00

Em fevereiro de 1980, militares fotografaram comboio de árabes até a Embaixada do Egito. À época, o regime proibia quaisquer manifestações desse tipo no Distrito Federal
Os militares não davam sossego aos árabes residentes em Brasília ou em visita à capital nos anos 1970 e 1980. Agentes dos órgãos de repressão da ditadura seguiam cada passo dos cidadãos oriundos de países como Irã, Síria, Iraque e Líbia. Também miravam integrantes da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Eles eram fotografados e tinham endereços, placas de carros e outros dados cadastrados caso participassem de qualquer ato público no Distrito Federal.


O Correio encontrou seis dossiês elaborados por órgãos de repressão no Brasil que tiveram árabes como investigados. Os documentos trazem informações detalhadas das vidas desses estrangeiros, inclusive de embaixadores e diplomatas. Os processos contêm, além das fichas, fotografias dos árabes nas mais diversas ocasiões. As imagens eram feitas por agentes secretos que se passavam por jornalistas para clicar os alvos.

Os dossiês contra árabes fazem parte dos arquivos secretos da Secretaria de Segurança Pública do DF (SSP-DF), guardados em quase 100 caixas de documentos com informações de 1963 a 1990. O material foi mantido em sigilo por mais de 50 anos e liberado para consulta na semana passada. Toda a documentação contém o carimbo de ;Confidencial; e os timbres de diversos órgãos de repressão. A documentação embasa a série de reportagens ;Brasília confidencial;, publicada desde sábado.

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Os militares intensificaram o cerco aos árabes em Brasília após estudantes ocuparem a Embaixada dos Estados Unidos em Teerã, no Irã, em 4 de novembro de 1979. Os militantes islâmicos exigiam do governo americano a entrega do xá deposto Reza Pahlevi, que fugiu e recebeu asilo dos EUA. O monarca era acusado de ter ;ocidentalizado; o país e cometido uma série de atrocidades. A população queria a condenação dele à forca pela Justiça iraniana (leia Para saber mais).

Manifestações

A partir de então, os órgãos de segurança brasileiros entraram em alerta, principalmente em Brasília, sede das embaixadas e dos organismos internacionais. As representações dos Estados Unidos, do Egito e de Israel ganharam reforço no patrulhamento da PM. O Serviço de Inteligência da corporação, então, passou a monitorar os estrangeiros vindos dos países árabes. O temor aumentou quando a comunidade árabe no DF deu início a uma série de manifestações antiamericana e antissionista.

Um dos atos foi realizado em 16 de fevereiro de 1980. Árabes ignoraram a proibição da SPP-DF de protestos desse teor e se reuniram no Centro Islâmico do Brasil, na 712/912 Norte. De lá, saíram em comboio até a Embaixada do Egito para mostrar a indignação do restabelecimento de relações diplomáticas entre Israel e Egito. Para eles, uma traição do governo egípcio.

Na oportunidade, agentes da ditadura fotografaram os participantes e anotaram as placas dos veículos. ;Alguns manifestantes traziam faixas, contendo, em sua maioria, críticas aos sionistas e ao Presidente Sadat (do Egito), enquanto outros portavam quadros de grande tamanho, com fotografias coloridas e em preto em branco do sr. Yasser Arafat. Fizeram-se presentes na concentração no Centro Islâmico, o sr. embaixador do Iraque, o Representante de Negócios da Líbia e outros Integrantes de representações diplomáticas de países árabes, cujas placas dos seus respectivos veículos foram anotadas (vide relação em anexo);, escreveram os investigadores em um relatório distribuído a outros órgãos de repressão.

Crianças e adolescentes

Os militares também demonstraram preocupação com a presença de crianças e adolescentes nesse e em outros atos. Eles diziam que, com elas, não poderiam coibir as manifestações. Mas o que mais os incomodava era o engajamento político da meninada: ;Preocupa-nos o comportamento das crianças envolvidas nas manifestações, possivelmente de nacionalidade brasileira e descendência árabe, que, em razão da pouca idade, demonstraram prematuro posicionamento quanto a questões políticas-sociais dos países de origem de seus ascendentes.;

Assim como ocorria nas manifestações de brasileiros contra a ditadura, os atos realizados por árabes também terminavam em prisões. Os líderes que não integravam o corpo diplomático eram levados em camburões para a Superintendência da Polícia Federal, em Brasília, onde eram interrogados por homens da Delegacia do Ordem Política e Social (Dops). Alguns deixaram a capital e até o país, após o interrogatório.

Ao fim de fevereiro de 1983, os órgãos de repressão brasileiros tinham as fichas dos árabes residentes na capital federal, que circulavam em 74 veículos, sendo 13 de embaixadas. A partir das placas, eles levantaram os endereços, os parentes residentes no DF e as possíveis ligações desses cidadãos com grupos políticos de seus países de origem e de movimentos brasileiros, que, naquela época, lutavam pela volta da democracia.

Outra fotografia da Secretaria de Segurança Pública comprova a vigilância de militares durante manifestações árabes: %u201Cadvertido%u201D

Reconhecimento

A Organização para a Libertação da Palestina foi fundada em maio de 1964, em Jerusalém, com o apoio da Liga Árabe. Ela inclui diversas facções palestinas. Em 1974, a OLP foi reconhecida como a representante do povo palestino pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Desde a sua criação, a OLP teve como presidente Yasser Arafat, substituído por Mahmoud Abbas. O braço legislativo da OLP é o Conselho Nacional Palestino, parlamento de 669 membros que formula políticas e toma decisões.



Para saber mais

Episódio irou filme

Dezenas de funcionários da Embaixada dos Estados Unidos em Teerã foram feitos reféns de militantes islâmicos a partir de 4 de novembro de 1979. A maioria ficou sob o poder dos iranianos por 444 dias, confinados, ameaçados e torturados. Só seis pessoas conseguiram fugir após a invasão. Com a ajuda de diplomatas canadenses e de integrantes da inteligência americana, chegaram a salvo aos EUA poucos meses após o incidente. O plano de fuga foi um tanto inusitado: forjar uma filmagem em território iraniano em plena crise diplomática. Os seis fugitivos seriam membros da equipe cinematográfica e portariam passaportes canadenses falsos. Por mais próxima da ficção que possa parecer, essa história é real, mantida em sigilo pela CIA por mais de 30 anos e pouco conhecida internacionalmente. Ela virou filme de Ben Affleck em 2012. Argo ganhou o prêmio de melhor filme no Oscar 2013.


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