Cidades

Conheça a história do soldado de Napoleão que povoou a Chapada

Fugindo da guerra, migrou para o Brasil por volta de 1814, formou família e integrou a Guarda Imperial de D. Pedro II

Renato Alves
postado em 19/02/2017 08:10

Destino de místicos e amantes da natureza, a região da Chapada dos Veadeiros teve como um dos pioneiros um soldado polonês, combatente do exército de Napoleão Bonaparte. Proveniente da região de Krosno, Antoni Dolenga Czerwinski integrou as forças do general francês quando a Polônia estava sob o domínio do império russo. Fugindo da guerra, migrou para o Brasil por volta de 1814, formou família e integrou a Guarda Imperial de D. Pedro II. No fim da primeira metade do século 19, recebeu uma carta de sesmaria para cultivar terras do sertão de Goiás, onde se fixou e morreu.

Em uma expedição como as organizadas pelos bandeirantes paulistas nos séculos 18 e 19, Antoni Czerwinski viajou para os rincões goianos, onde se estabeleceu e fundou a Fazenda Polônia. Por décadas, parte dos 12 filhos dele permaneceu nessa propriedade, que abrangia as atuais São João D;Aliança e Água Fria de Goiás, municípios do Entorno do Distrito Federal, ambos a pouco mais de 150km de Brasília. A outra parte retornou a Pimhuí (MG), a cidade natal da mulher com a qual se casou, Umbelina Adelaide Silvânia Szervinsk.

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Desconhecida pela maioria dos brasileiros, a saga desse personagem continua presente na memória coletiva da colônia polonesa originária dele. Mas nem mesmo os mais assíduos frequentadores da Chapada ouviram falar de tal polonês ou sequer da existência de uma comunidade de descendentes dele em região com tantas riquezas naturais e culturais. No entanto, ela não passou despercebida para um pesquisador da Universidade de Brasília (UnB), hoje professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e da rede pública do DF.

O professor Jucelino Sales, 31 anos, mora em Formosa, onde dá aulas na unidade da UEG. Nascido em São João D;Aliança, ele faz parte da sétima geração do polonês. ;Desde menino, eu escutava os episódios ao redor desse personagem como uma lenda, mas os meus parentes sempre tiveram plena certeza de que eram originários de um polonês;, conta ele, que enxergou no mestrado a oportunidade de pesquisar a história de Antoni.

Provas documentais

Graças a Jucelino Sales, o que era uma lenda ficou comprovado cientificamente. Em sua investigação, quando fazia mestrado no Instituto de Letras da UnB, ele resgatou documentos que comprovam a origem do polonês e a doação das terras goianas a ele. Os papéis mais importantes são um registro paroquial de terras, datado de 1848, e uma certidão de posses de terra, de 1955, com informações sobre Antoni Dolenga Czerwinski e a família brasileira dele.

O documento de 1848 foi feito dois anos antes da Lei de Terras no Brasil (veja O que diz a lei) e registrado na Comarca de Cavalcante (GO), à qual várias vilas do nordeste goiano estavam subordinadas. Em grafia da época, ele prova a existência da Fazenda Polônia e traz os nomes do polonês e da mulher dele: ;Umbelina de Szeminoka casada com Antonio de Szeminoka dá para registro dessa Villa e termo a fazenda POLONIA no município de Cavalcante, apariada desde (mil oitocentos e) quarenta e seis com criação e alguma cultura além de benefícios e se os 12 filhos cujos três já são maiores (...);.

Para o pesquisador, ;o nome da Fazenda Polônia grafado em letras garrafais e presente na memória coletiva de seus moradores não deixa dúvidas sobre a condição real desse espaço marcado com o nome da pátria do europeu;. Por meio do mesmo documento, Sales estimou o ano em que Czerwinski aportou em solo brasileiro. ;Considerando que o documento diz que, na época do registro, o polonês e sua esposa já tinham gerado 12 filhos, sendo três maiores de idade, e a maioridade nessa época era 21 anos, assim, subtraindo pelo menos 23 anos em relação a 1848, data do registro, a chegada do polonês no Brasil é anterior a 1830, provavelmente no fim do período napoleônico, uma vez que ele fazia parte do exército de Napoleão.;


Nomes aportuguesados

Entre os descendentes, no entanto, o dono da Fazenda Polônia era e é conhecido como Antonio Rebendoleng Szervinsk. Sales também descobriu a grafia original por meio de um documento cartorial. Ele diz que a confusão com o nome se deu, possivelmente, ;por ter se apagado nas reconfigurações da memória coletiva e pela insuficiência de registros de imigração, nos quais constem a entrada do polonês no Brasil;.

Os registros de imigração polonesa no Brasil foram mais bem documentados na região Sul, onde, de 1824 a 1829, com a imigração alemã, o primeiro grupo de poloneses chegou a Santa Catarina. São raros os dados de imigração sobre o Centro-Oeste e, quando citam a região, remetem às últimas décadas do século 19 ou às primeiras décadas do século 20. Sales, porém, encontrou uma referência sobre Antoni Dolenga Czerwinski em artigo escrito em 1984 pelo seu compatriota Jan Magalinski.

Magalinski afirma que Czerwinski foi o primeiro imigrante a penetrar e se estabelecer em Goiás. Segundo Magalinski, ;nos anos quarenta do século passado (19), o primeiro imigrante de que se tem notícias mais concretas é Dolenga Czerwinski, de nacionalidade polonesa e pertencente ao exército napoleônico. Estabeleceu-se numa vasta área da Chapada dos Veadeiros onde (...) dedicou-se à agropecuária. Ele foi o introdutor da triticultura nessa região, onde os resultados das primeiras colheitas se mostraram surpreendentes.;

Outro indício usado por Sales é uma certidão cartorial de 23 de maio de 1955, guardada no cartório de Planaltina (GO). Ela remete claramente a um Antônio Szerwinsks e sua mulher, Umbelina Silvânia Szerwinshs. Tanto no documento de 1848 quanto nesse registro, o nome da esposa é o mesmo. ;Tal coincidência proporciona uma acentuação da evidência e concorre com a confirmação das primeiras suposições;, destaca o pesquisador.

Além de provas documentais, Sales ouviu moradores das vizinhas Água Fria e de São João D;Aliança. Eles falaram de uma Ambilina ao se referir à esposa do Polonês, como é mais conhecido Antoni Dolenga Czerwinski na região. ;Evidentemente, trata-se de uma variação linguística, fenômeno comum quando a palavra escrita se transfere para a fala, uma marca fonológica corriqueira dos sertanejos;, explica o professor da UFG.

Tataravô homenageado

Uma dessas pessoas é a professora aposentada Ana Domingas Pereira da Silva, 59 anos, tataraneta do Polonês. Ela mora em uma chácara, parte da antiga Fazenda Polônia, às margens da GO-118, rodovia que liga Brasília a Alto Paraíso, principal cidade da Chapada. Ana registrou a filha como Szervinskiana Brito Pereira, em homenagem ao tataravô. A estudante de 21 anos foi batizada com a junção do nome da mãe e a forma como os descendentes do Polonês passaram a escrever o nome dele.

Jucelino Sales observa que o sobrenome Szeminoka no primeiro documento de 1848 é registrado no de 1955 ;com a grafia se bifurcando em duas novas formas, detalhe originado pelo equívoco de uma letra, onde esposa e esposa no último documento, não coincidem, por essa minúcia, no sobrenome;. Sales destaca que entre um sobrenome e outro a letra k foi substituída pela letra h. Para eles, ;essa banalidade evidencia que se trata de um erro de grafia;. Outra explicação é o alto índice de analfabetismo e a baixa escolarização da época, o que contribuía para esse tipo de erro.

Ouro e quilombos

A mineira cidade de Piumhi tem pouco mais de 30 mil habitantes. Entre o Lago de Furnas e a Serra da Canastra, fica a 16km de Capitólio. A história da Piumhi começou em 1731, quando o bandeirante paulista João Batista Maciel explorou a região da nascente do rio São Francisco à procura de ouro. Já segundo Saint-Hilaire, o botânico e explorador francês que escreveu Viagem às Nascentes do Rio São Francisco, Piumhi teria nascido de um acampamento de soldados enviados à região para combater os quilombos estabelecidos na Serra da Canastra.

Novo modelo de cultivo

Além da importância para a história da imigração polonesa no Brasil e de servir como mais uma prova para a chegada e o estabelecimento de Antoni Dolenga Czerwinski em terras goianas, o relato de Magalinski revela a introdução de um novo modelo de cultivo em uma época em que a Província de Goyaz havia sofrido a ruralização de sua economia, antes denominada pela extração de ouro e outras pedras preciosas.


O berço dos Szerwiski?

Em sua dissertação, Jucelino Sales recorreu também à internet. No site www.moikrewni.pl (;meus parentes;, em polonês), encontrou referência ao sobrenome Szerwiski ; transcrito, assim, iconograficamente. Vivem na Polônia, atualmente, 95 pessoas com esse sobrenome, sendo Koto, na região da ;grande Polônia; (Wielkopolska), a cidade onde aparece um número maior de familiares dessa linhagem: 12 dos 23 mil habitantes. A relação entre o sobrenome Szerwiski presente na Polônia e o Szervinsk e suas variantes, presente na linhagem do ancestral polonês, ;é de ordem da semelhança indiscutível;, garante Sales.

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