Cidades

Instituto quer que Cúria explique má conservação do afresco da Igrejinha

Obra de um dos mais importantes artistas brasileiros, o Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna pede que a cúria metropolitana esclareça as circunstâncias da destruição do antigo afresco da Igrejinha, nos anos 1960

Luiz Calcagno
postado em 04/03/2017 07:00
Volpi na produção do afresco do Itamaraty

Mais de cinco décadas se passaram desde a destruição de um dos mais importantes murais do artista plástico ítalo-brasileiro Alfredo Volpi, pintado na Igreja Nossa Senhora de Fátima, na 307/308 Sul. O ato remonta aos primórdios da capital federal, mas não caiu no esquecimento. Agora, representantes do Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna, em São Paulo, querem que a Arquidiocese de Brasília e a cúria metropolitana da Igreja Católica prestem esclarecimentos sobre o crime contra o patrimônio artístico e cultural brasiliense de meados de 1960. Os registros sobre a depredação são orais. A versão mais aceita é a de que fiéis e o pároco à época removeram o afresco por considerá-lo ;profano;.

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Volpi foi convidado por Oscar Niemeyer para pintar a obra, considerada a mais relevante da fase religiosa do artista (leia Para saber mais). O afresco foi pensado como parte de um conjunto composto pelo desenho do prédio, elaborado pelo arquiteto, pela fachada de azulejos de Athos Bulcão e pelo paisagismo de Burle Marx. A virgem com o bebê no colo foi criada a partir de uma mancha única, com traços e cores posteriores destacando as figuras, ladeadas por bandeirolas. A técnica é uma releitura modernista das regras das pinturas renascentistas e pré-renascentistas. Volpi a elaborou após um estudo profundo do trabalho de artistas como Giotto di Bondone. A mãe de Jesus flutuava sem pés sobre fundo azul-cobalto, escolhido para criar uma sensação de introspecção. Da obra, restam só fotos em preto e branco.

[SAIBAMAIS]Sócio-fundador e diretor do Instituto Alfredo Volpi, Pedro Machado Mastrobuono explica que o pedido de esclarecimento surgiu após a conclusão do Catálogo Raisoneé do artista, que reúne todas as obras, com informações específicas de cada produção, cruzadas com documentos como cartas e entrevistas. O levantamento definitivo visa identificar a fase criativa de Volpi, em cada período da vida. ;Vai haver uma tentativa, em um primeiro momento, amigável. Vamos encaminhar correspondências buscando informações e esclarecimentos de fatos e circunstâncias em uma tentativa de resgatar a memória. Ninguém vai processar a igreja sem, antes, uma tentativa amigável;, reforçou Mastrobuono.

A Igreja Nossa Senhora de Fátima, na 307/308 Sul, é o primeiro templo de alvenaria inaugurado em Brasília: respeito à memória afetiva

Do ponto de vista jurídico, o diretor destaca que o crime da destruição do mural em prédio público prescreveu. Além disso, à época, o local não era tombado. Porém, na visão de Mastrobuono, há uma dívida moral, e as autoridades religiosas da capital teriam o poder para ajudar a restituir, ;com toda a dignidade;, a trajetória de Volpi em Brasília. ;Isso é importante para o povo brasiliense e para a integralidade da vida dele. Se artistas da música popular brasileira têm o direito de examinar arquivos e obter informações sobre a censura, por exemplo, a obra de Volpi também. O intuito do instituto não é um ressarcimento. O que se busca é um esclarecimento para que isso fique claro na biografia do autor;, concluiu.

Profano

Anos após a destruição, a Igrejinha foi tombada. Mas a obra de Alfredo Volpi, que deveria estar preservada, não passava de manchas irreconhecíveis escondidas sob tinta branca. Embora ele também tenha um mural pintado no Palácio Itamaraty, Mastrobuono argumenta que o pintor foi tolhido da história de Brasília e da memória afetiva de todos os moradores ou visitantes que se ligaram emocionalmente ao templo religioso na Asa Sul. ;Se a obra era moderna demais para uma igreja, todo o contexto ao redor também era. Dessa forma, o prédio, os azulejos, o paisagismo, nada disso deveria ter sido aceito pelos fiéis;, alfineta o diretor. Hoje, o prédio ostenta a pintura do piauiense radicado em Brasília Francisco Galeno, que compôs, sob a mesma resistência de fiéis à obra de Volpi (leia Memória), uma homenagem ao artista.

Para o arquiteto, especialista em patrimônio histórico e restaurador da Igrejinha Rogério Carvalho, os protestos reforçam a teoria do crime de intolerância. A novela que se desenrolou no fim do primeiro semestre de 2009 contou com abaixo-assinado, missa de costas para a pintura e lençóis para cobrir a obra de arte. ;A remoção do painel de Volpi, no início da década de 1960, aconteceu quando o país vivia um período de visão retrógrada, pré-golpe militar. Tanto é que, em 1964, o golpe aconteceu. Era tudo muito propício a esse tipo de atitude. E as mesmas pessoas que removeram o painel do Volpi bateram de frente com o novo afresco. Alguns fiéis me abordaram e me disseram que ajudaram a arrancar a parede do Volpi porque era profano;, conta Rogério.

Para fazer a obra, Galeno usou o azul-cobalto ao fundo e colocou a imagem de Nossa Senhora ao centro. Críticos de arte também atestaram que os traços do artista e a paleta de cores é parecida com a de Volpi, para garantir uma imagem original e, ao mesmo tempo, respeito ao afresco destruído. A obra atual é protegida pelo tombamento. ;É possível resgatar o momento da destruição, mas será difícil. As pessoas que fizeram isso talvez não estejam vivas ou lúcidas, e a história oral não é um dado tão confiante. É preciso uma pesquisa, talvez contando com imagens do arquivo público, com fotografias que mostram o painel até tal data e, depois, tudo pintado de branco;, propõe Rogério.

Na visão da ex-diretora e fundadora do Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UnB), Grace de Freitas, o resgate é importante. ;Como tiram o Volpi assim? É um capítulo tenebroso na história da arte em Brasília. Eu acho que esse resgate é importante para tomarmos conhecimento do que aconteceu. Infelizmente, o ato de cobrir pinturas é reincidente na história da humanidade;, lamenta.

Por e-mail, a Arquidiocese de Brasília informou que ;não irá se manifestar no momento, nem por meio de nota;.

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