A cirurgia de um menino de 11 anos abandonado pela família durou quase três horas. No centro cirúrgico do Hospital Regional da Asa Norte (Hran), médicos corrigiam a fissura labiopalatal, uma malformação na face que interfere drasticamente no convívio social. Aqueles que não têm a deformação tratada corretamente carregam histórias de preconceito e falta de oportunidades. Essa foi a terceira tentativa para atenuar o problema. Assim como o garoto, 139 pessoas passaram pelo procedimento no ano passado em busca de acabar com o estigma que o problema impõe ; número 13,6% menor que em 2015, quando 161 operações ocorreram.
[SAIBAMAIS]Não há números precisos sobre a dimensão da malformação na capital federal. Assim como no país inteiro, os casos não são de notificação compulsória. A estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) é de que uma em cada 650 crianças no Brasil nasça com o problema. Apesar de ter simples correção, a fenda, quando não corrigida, é potencial agravante para depressão, dificuldades alimentares, entre outras complicações.
Nos últimos 27 anos, a fonoaudióloga Fernanda Lima Reis viu o drama se repetir um sem-número de vezes. Maridos abandonam esposas quando filhos nascem com o defeito. Crianças e adolescentes reclusos em casa com vergonha da própria face. Falas comprometidas ou, pior, vozes caladas. O olhar de expressão forte revela as marcas da experiência. ;Tentamos devolver a esperança para esses pacientes, de modo que esse universo particular seja modificado;, explica.
Fernanda caminha pelos corredores do Hran e mostra as estruturas do núcleo, como salas de cirurgias e de recuperação e consultórios. Um parque infantil simples e uma prateleira com quatro ou cinco livros são as opções de distração para aqueles que aguardam atendimento. São 15 profissionais, entre cirurgiões plásticos, otorrino, fonoaudiólogo, nutricionista, dentista e assistentes sociais. ;Quando a cirurgia é feita no tempo correto, conseguimos trabalhar melhor o prognóstico;, pondera.
Ela sabe, são muitas as dificuldades, mas não desanima. Em novembro passado, quase não ocorreram cirurgias. Ao longo de 2016, greves, falta de insumos e interrupção do funcionamento da lavanderia contribuíram para o decréscimo nas cirurgias. Uma média de quatro crianças são operadas por semana. O número poderia chegar a 10, segundo o coordenador do Ambulatório de Fissurados do Hran, Marconi Delmiro. O setor disputa vagas com outras 10 unidades cirúrgicas. O espaço de cinco salas para procedimentos eletivos, ou seja, com agendamento prévio, e uma para emergências não comportam a demanda.
Esperança
Minutos antes de receber a equipe do Correio, Marconi chefiava a cirurgia do menino que o leitor conheceu no início da reportagem. ;Uma cicatriz no lábio ou no nariz é mais aceitável socialmente que a fala comprometida, que, por exemplo, interfere no desenvolvimento profissional e nas atividades escolares;, frisa. Ele emenda: ;As famílias chegam abaladas e, por isso, nosso tratamento é humanizado. Aproximamos o paciente da gente e facilitamos o acesso aos serviços públicos;, detalha.Às segundas-feiras, cerca de 80 pessoas se amontoam no ambulatório em busca de atendimento, conta Marconi, enquanto mostra fotos no celular do antes e do depois de alguns pacientes. ;Nosso lema é devolver a criança para o convívio social;, destaca Marconi. Um dos pacientes que passou pelas mãos do cirurgião plástico é Benício Batista do Sacramento, 11 meses. Hoje, o bebê exibe apenas uma cicatriz discreta no rosto. "Alterou muito a face. É outro visual. Isso sem levar em conta os benefícios para a fala e para a alimentação", conta a mãe do menino, a bancária Kézia Batistas Cruz, 33 anos.
A família vive em Vicente Pires. Após cinco meses da operação, as visitas ao consultório diminuíram e a única preocupação é o uso de uma pomada para a cicatrização. ;Descobri a fissura nas últimas ecografias. Depois, pesquisei e vi que não era nada demais. Algumas mães levam um susto. Não quero esse menino assim, já escutei enquanto aguardava na fila do ambulatório;, salienta. Ela ressalta a qualidade dos profissionais do Hran. ;Muita gente busca o tratamento em São Paulo, mas aqui temos uma equipe que acolhe a gente muito bem;, completa.
O envolvimento de Eliana Becker Molina com os fissurados ultrapassa três décadas. O primeiro contato foi com a filha, hoje adulta. A experiência fez com que ela se juntasse a outras mães e fundasse a Associação de Apoio aos Fissurados Labiopalatais (AAFLAP). O grupo dissemina informações sobre a malformação e auxilia na assistência ambulatorial. ;Sempre temos que sensibilizar as escolas, orientamos as professoras para esclarecer as dificuldades da criança com fissura;, explica. A maior dificuldade é o acesso ao tratamento. ;Os centros de referência são distantes das residências dos pacientes;, critica, ao citar Brasília, que recebe pacientes da região Centro-Oeste, Norte e Nordeste.
Registros
Em todos os países da Europa, os serviços médicos são obrigados a registrar o nascimento de crianças com fissura labiopalatal. Na América do Sul, o Chile é uma das referências no tratamento. Lá, os médicos notificam os casos em até 15 dias. A intenção é que as crianças até os 15 anos tenham concluído o tratamento.
Doações
Em maio do ano passado, o ambulatório recebeu um aparelho para auxiliar no tratamento dos pacientes fissurados. O VeinViewer, que permite visualizar com nitidez as veias, facilitando a venopunção, foi comprado com dinheiro arrecadado em doações e em rifa organizada pelo grupo de voluntários São Francisco de Assis, pela Associação Brasiliense de Apoio aos Fissurados (Abrafis) e pelo Serviço Multidisciplinar de Assistência aos Fissurados do Hran. A brinquedoteca do local foi montada da mesma forma.