Cidades

Especialistas já alertavam para escassez de água no DF há 20 anos

Em meio à crise hídrica, nem os temporais dos últimos dias foram suficientes para aumentar o volume dos reservatórios

Pedro Grigori - Especial para o Correio
postado em 30/03/2017 06:00 / atualizado em 19/10/2020 13:23

Até ontem, tinha chovidos apenas 72% do esperado para o mês de março do DF: às vésperas do início da seca

A pouco mais de um mês do começo do período de seca, nem mesmo os temporais dos últimos dias se tornaram suficientes para que março terminasse, ao menos, na média histórica de chuvas. Os 257mm de precipitações registrados em fevereiro até ajudaram a levantar o volume dos reservatórios na época. Mas, neste mês, choveu apenas 72% do esperado — ou 130,4mm. Com isso, as barragens do Descoberto e de Santa Maria/Torto seguem com os níveis em 48,07% e 49,67%, respectivamente.

 

 

 

A água, principal responsável pela vida na Terra, é usada, diariamente, para consumo, produção de alimentos, higiene e ainda para acionar as turbinas em centrais hidrelétricas, gerando energia. E o assunto nunca esteve tão na boca do povo quanto agora, quando, uma vez a cada seis dias, o recurso é cortado da torneira dos brasilienses. Porém, a crise hídrica, que se agravou a partir de outubro do ano passado, com a instauração da tarifa de contingência para os grandes consumidores, não é tão inédita quanto parece. O Correio ouviu especialistas, pesquisadores e membros de sociedade civil que relatam estudar e vivenciar o problema há mais de 20 anos. O assunto também será debatido hoje durante o terceiro Seminário Águas Acima.


Saiba Mais

O escritor e ecossociólogo Eugênio Giovenardi, com vasto estudo sobre o meio ambiente, relatou que o governo e a população ainda não aprenderam a utilizar a água da chuva. “Na última terça-feira, choveu quase 30mm, o que corresponde a 30 litros de água por metro quadrado. E, na grande maioria dos casos, essa água desce ralo abaixo. Pela grande quantidade de água em terras brasileiras, criou-se uma consciência errada de que o líquido é um bem infinito. Sendo assim, acabamos nos deixando ficar confortáveis a não precisar aparar a água da chuva ou a reutilizar líquidos usados em casa, como na máquina de lavar ou em outras atividades”, conta.

O escritor lançou em 2005 o livro O Retorno das Águas, que previa um racionamento no Distrito Federal num prazo de 10 anos. “O que houve foi falta de critério no uso do dinheiro público. Quando inaugurado, o Descoberto deveria armazenar 102 trilhões de litros d’água. Isso, para uma população de 600 mil pessoas, era muita coisa. Mas, hoje, só Ceilândia tem 500 mil moradores. Novos projetos deveriam ter sido feitos”, afirma. Um dos planos, segundo o ecossociólogo, deveria ter sido o aproveitamento da água da chuva, ponto em que o presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Distrito Federal (Cau/DF), Alberto de Faria, também concorda. “O que propomos é regular o uso de diferentes tipo de água, dependendo da situação. Não indicamos que alguém beba a água da chuva, mas também é injusto lavar carros e calçadas com água tratada pela Caesb — um líquido com grande qualidade, que deveria ser adotado apenas para consumo”, destaca Giovenardi.

Problemas à vista 

Mesmo com o aumento do nível dos reservatórios nas últimas semanas e o começo de novas obras de captação, a previsão da promotora de Justiça de Defesa do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural, Marta Eliana de Oliveira, para os próximos meses, ainda é problemática. “Pesquisas mostram que chegaremos a dezembro com 11% dos reservatórios. E isso com a ajuda do sistema de captação do Lago Paranoá sendo entregue em setembro. Esse número já traz um alerta e, para piorar, em todos esses anos que trabalho no setor, nunca vi uma obra não atrasar. Ou seja, estamos contando com essa água que, talvez, nem chegue a tempo”, relata.

Essa piora na situação hídrica e diversas vertentes que a rodeiam é tema de debate hoje na sede do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal. A terceira edição do Seminário Águas Acima tem entrada aberta e gratuita para toda a população. “Debateremos diversos assuntos, inclusive a aritmética da água, em que tentamos buscar uma solução para essa conta que não fecha, na medida em que temos mais pessoas do que água disponível”, adianta Eugênio Giovenardi, um dos palestrantes do seminário.

 

Programe-se

3º Seminário Águas Acima
Onde: Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal (IHG/DF) 
— SEPS, Entrequadra 703/903, Conjunto C
Horário: das 8h30 às 12h e das 14h às 18h Não é necessária inscrição Entrada gratuita

O que dizem os especialistas


Eugênio Giovenardi,
Escritor, ecossociólogo e acadêmico do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal  (IHG/DF)
“Apesar de o Brasil ser detentor de  12% da água doce do planeta, a gestão do fornecimento de água à população não se tornou motivo de planejamento nem prioridade para os governos. Isso gerou uma crise histórica de gestão da abundância de água. Aquela cultura que vinha até ontem, de que a água é infinita, porque a técnica e a tecnologia vão dar um jeito no futuro, tem que ser deixada para trás. O racionamento de água é político, ele chega para contornar uma situação já causada, quebrando a brutal cultura de gasto, e, infelizmente, foi algo que demorou acontecer.” 



Alberto de Faria,
Presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Distrito Federal (Cau/DF)

“A questão da água está ligada diretamente à quantidade de recursos para ocupar um lugar. Todas as ocupações humanas nasceram próximas à água, desde colonizações babilônicas e egípcias, ao lado do Nilo, por exemplo. O DF foi construído em cima da ótica de planejamento, mas faltou controle e gestão do espaço humano. Temos áreas, como Vicente Pires e Arniqueiras, construídas em cima de nascentes, que foram ocupadas por conivência de agentes públicos e ausência de fiscalização. O conceito de que essa invasão não terá consequências, de que a água é infinitiva, é que gera a nossa atual situação.”


Rosany Jakubowski,
Presidente da Associação de Produtores Rurais Pró-Descoberto
“Oficialmente, a crise hídrica virou pauta no ano passado. Mas é um assunto recorrente entre os produtores há mais de 20 anos, quando começamos a perceber e lutar contra a ocupação irregular de áreas de nascentes e reservas. A gente denunciava, porém, nada acontecia. Existe muita omissão com os problemas que estão acontecendo, mas, agora, com a crise, estamos tendo pequenos avanços, porque está se começando a falar do assunto. Esse não é um problema que vai se resolver em um ano ou dois, precisamos de ações continuadas de conscientização, como compromisso com as novas gerações.”



Marta Eliana de Oliveira,
promotora de Justiça de Defesa do Meio Ambiente e Patrimônio Cultura
“Não estamos lidando com algo que aconteceu do dia para noite. A bomba veio sendo montada ao longo dos anos e, agora, estourou no colo desse governo. Mas a atual crise foi causada por vários fatores, de vários segmentos, inclusive da sociedade civil. Nós temos que nos unir e cobrar mais, fazer com que sejamos ouvidos, pois não dá para dizer que nunca houve planejamento. Houve, sim. Tivemos Corumbá IV, água para 100 anos, como diziam. Na minha opinião, foi um plano equivocado e não executado. Mas, agora, não é a hora de falar ‘eu avisei’. Temos que nos conscientizar, porque hoje é um problema de todos.”

 

* Estagiário sob supervisão de Sibele Negromonte 

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação