Otávio Augusto, Isa Stacciarini
postado em 07/05/2017 09:13
O álbum de família para sempre incompleto. Aniversários de vida e de morte. Recomeços permeados de saudade, revolta, resiliência e um desejo de que ninguém mais viva o luto de enterrar um amor vítima de barbárie no trânsito. Esses são sentimentos comuns a sobreviventes de uma guerra travada nas ruas da capital. Ela tira a vida de crianças, jovens e idosos de todas as classes sociais. Do Gama ao Lago Norte. Da Área Rural de Sobradinho ao Guará. Em cada endereço, há quem sofra pela vida perdida de forma violenta no asfalto.
O Correio esteve com brasilienses com a história marcada por desastres automobilísticos. Gente que perdeu parentes, amigos ou que escapou por sorte. Os relatos evidenciam o que psiquiatras e psicólogos destacam: o trauma é eterno. Quem aprende a conviver com a perda não supera a sensação de injustiça.
Edson Antonelli encontrou a morte aos 61 anos. Luis Filipe Evangelista, aos 18. Alessandra Tibau teve a vida interrompida aos 33. A filha dela, Júlia Trino Oliveira, não conseguiu completar 2 anos. Todos eles, embora nunca tenham se visto, cruzaram o caminho com motoristas que desrespeitaram as leis de trânsito: beberam e dirigiram, ultrapassaram a velocidade permitida e conduziram o carro com oito pessoas dentro ; duas no porta-malas. Os motoristas seguem a vida ao lado das famílias.
Veja vídeo com depoimento de Cleuza Maria:
Veja vídeo com depoimento de Cleuza Maria:
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Solidão
A vida dos Antonelli é dividida entre antes e depois de 23 de abril último. Na manhã de um domingo, uma motorista alcoolizada atropelou a bicicleta que Edson pedalava, a poucos metros de casa. Ali o administrador de empresas perdeu a vida. Pouco antes, ele havia se despedido da mulher, Rose Antonelli, 56 anos, como fazia rotineiramente para dar uma volta de bicicleta. Na quinta-feira, a paisagista recebeu a equipe de reportagem em casa para a primeira entrevista desde a tragédia. Com serenidade e saudade ; estampada nos olhos marejados ;, Rose compartilhou o luto, mas se lembrou dos bons momentos com o marido, com quem compartilhou a vida por 35 anos. ;Não sabia o que era tristeza, dor e solidão. Não sei o que vai ser de mim;, desabafou (leia Depoimento).
Na família Oliveira, maio ; mês dedicado à reflexão sobre o alto índice de mortos e feridos no trânsito, por meio da campanha Maio Amarelo ; ficará marcado para sempre. No domingo do Dia das Mães de 2014, um motorista bêbado matou Alessandra Tibau Trino Oliveira, 33 anos, e a filha, Júlia Trino Oliveira, 1 ano e 7 meses. As duas estavam no carro da família, conduzido pelo marido e pai das vítimas, Gabriel Faria de Oliveira, então com 31 anos. Eles voltavam para casa, em Águas Claras, após uma festa familiar. O acidente aconteceu no cruzamento de acesso à via de entrada da cidade. Alessandra morreu na hora. Júlia chegou a ser socorrida, mas não resistiu. Gabriel teve duas costelas quebradas, ferimentos pelo corpo e nunca mais foi o mesmo.
O apartamento onde morava de aluguel com a família em Águas Claras foi entregue dias após o acidente. Sensibilizada, a dona sequer cobrou o valor da rescisão. Em busca de recomeço, Gabriel, hoje com 35 anos, se mudou para Vitória da Conquista (BA), onde mora o pai dele. A irmã de Gabriel, Ludimila Oliveira, 37, lembra-se, emocionada, dos dias intermináveis. ;Não sei explicar o que é esse sentimento. Assim que acontece, a dor é muito intensa. A gente não consegue ver perspectiva. Depois, começa a digerir. Mas a vida não volta ao normal;, ressaltou, emocionada.
[SAIBAMAIS]Gabriel evita falar do acidente. Nunca contou detalhes a alguém da família. Até quando morava em Brasília, nunca mais passou pelo local do acidente. ;Ele dá a volta lá por cima da
EPTG, mas não passa ali. Virou um tabu. Ninguém esquece, mas também não fala. Uma vez, vi o meu irmão chorando na varanda do apartamento da minha mãe. Cheguei e o abracei. Quando percebi, vi que era porque o vizinho brincava com uma menininha que parecia ter a mesma idade da Juju (Júlia).;
Entre as memórias que não se apagam, está a do dia em que Ludimila desmontou o apartamento do irmão. Fazia dois dias desde o acidente. Na pia ainda estava a louça suja e a mamadeira da Júlia por fazer. A cama desarrumada e as roupas em cima revelavam que a família voltaria. ;Foi a coisa mais triste de toda a minha vida. Tudo estava do jeito que eles deixaram, porque saíram rapidinho e voltariam. Meu irmão disse que podia dar tudo da Júlia para a secretária que trabalhava com eles. Ela levou boa parte das coisas. À época, minha filha tinha 9 meses. Ele ficou seis meses sem nem tocá-la, porque isso doía nele.;
Depoimento
;Sempre fui a Rose do Edson. E agora, quem sou eu?;
;No dia do acidente, escutei de casa as sirenes dos bombeiros. Jamais pensei que o socorro era para o meu marido. Naquela manhã, busquei uma sobrinha na Asa Sul para almoçar aqui em casa. Ao chegar ao local marcado, senti um mal, até comentei com minha sobrinha, mas continuamos o passeio. Às 12h30, ela ligou para o celular do Edson para avisar que estávamos voltando, mas um agente de trânsito atendeu. Ele estava morto. Me deu uma tremedeira e abriu um buraco no chão. Ele perguntou quem eu era e quantos anos tinha. Perguntou se eu estava sozinha e pediu para falar com a pessoa que me acompanhava. Minha sobrinha recebeu a notícia e me poupou até chegarmos em casa. O trânsito para o Lago Norte nunca foi tão lento. Quando nos aproximamos, ela pediu para virmos para casa, porque meu filho já tinha ido ao local do acidente. Quando chegamos, um médico, muito amigo da família, já estava aqui. Aí não precisava mais dizer nenhuma palavra. Me sinto em um final da fila que só aumenta e o que posso fazer? Sempre fui a Rose do Edson. E, agora, quem sou eu? Foi uma lâmpada que se apagou num choque, mas ele precisa me ver bem e ver os filhos bem para que possa ficar em paz na viagem dele. No dia do acidente, falaram que a motorista estava em estado de choque. Quem está em estado de choque sou eu e os meus filhos. Ela estava em estado de embriaguez. Alguma coisa tem que ser feita para parar esse apocalipse.;
Rose Antonelli, 56 anos, mulher de Edson Antonelli, 61, morto há 13 dias em um atropelamento no Lago Norte
ARTIGO
por Mario Louzã*
Mortes difíceis de aceitar
A morte é possivelmente a única certeza de nossa existência. Todos terão que enfrentá-la um dia, a sua própria ou a de algum ente querido. Quando perdemos um ente querido, naturalmente passamos por um período de tristeza ; o luto ; que em geral dura alguns meses. Temos, em princípio, maior facilidade para aceitar a morte de nossos ascendentes (pais, avós) do que a de nossos descendentes (filhos, netos), uma vez que essa é a sequência natural da vida. Já situações de morte repentina ou cuja causa esteja ligada a uma situação que poderia ter sido (às vezes, facilmente) evitada, ou quando decorre de algo ligado a um descaso, são muito mais difíceis de aceitar.
No Brasil, cotidianamente, se ouvem notícias de mortes por balas perdidas, acidentes automobilísticos cujo motorista estava embriagado ou desrespeitou um semáforo vermelho e outras tantas situações que deixam as pessoas que perderam alguém revoltadas, com raiva e com maior dificuldade para aceitar o que ocorreu. Mortes que ocorrem nessas situações são mais difíceis de enfrentar; a não aceitação leva, muitas vezes, à persistência do luto por um período e numa intensidade que ultrapassa o que é esperado de acordo com as características culturais.
O transtorno do luto prolongado é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma doença mental, caracterizada por um quadro depressivo persistente que se segue à perda de um ente querido, e que não melhora naturalmente como seria de se esperar no luto ;normal;. A pessoa com transtorno do luto prolongado tipicamente continua de luto por meses ou anos; comumente usa expressões como ;não me conformo;, ;não consigo aceitar o que aconteceu;, carregando consigo um sentimento contínuo de tristeza profunda, com prejuízos importantes no seu cotidiano. O transtorno do luto prolongado requer tratamento especializado, muitas vezes a associação de tratamento medicamentoso e psicoterápico.
Mario Louzã, é psiquiatra e psicanalista especializado em psicoterapia psicanalítica pela Universidade de Würzburg, Alemanha
Meu irmão virou apenas estatística
A dentista Paula Rodrigues da Costa, 36 anos, e a administradora Márcia Torres Giraldi, 41, são personagens de histórias dilaceradoras. A primeira perdeu sete parentes em acidentes automobilísticos. O mais recente, que matou a irmã Paloma, uma prima e uma tia, acaba de completar uma década. ;É desesperador ver três caixões numa mesma capela. Imagina a dor da minha família;, comenta a moradora do Guará.
A colisão aconteceu em 2007. Um motorista furou o balão de acesso a Unaí (MG) e bateu de frente com o carro onde estavam as mulheres. Os corpos ficaram espalhados pelo chão. Elas voltavam de uma festa de aniversário em Valparaíso (GO). ;Explico a importância da prudência no trânsito para o meu filho ser um motorista consciente;, conta, ao se referir a André Calebe, 9 anos.
Márcia fica irritada quando fala da morte do irmão Marcos, aos 37 anos. Um motorista embriagado causou o acidente fatal no Buraco do Tatu, em 2011. ;O motorista estava com a habilitação vencida, bêbado, o carro sem documento e tinha 51 infrações de trânsito. Meu irmão deixou dois filhos. Meu irmão virou apenas estatística, enquanto ele voltou a dirigir como se nada tivesse acontecido;, desabafa. Ela voltou ao local e reviveu a indignação. ;A Justiça pune quem perde; aquele que causa o sofrimento não é punido. Quando vejo notícias sobre acidentes, logo penso que mais uma família perde alguém que ama por uma ação inconsequente.;
Mês de queda
O número de mortes no trânsito do DF caiu, segundo o Detran. Em abril, foi registrada uma queda de 56,8%, se comparado ao mesmo mês do ano passado. Foram 44 vítimas, em 2016, contra 19 agora. Somados os quatro primeiros meses deste ano, também foi registrada uma redução de 36,5% de mortes no trânsito em relação a 2016, quando houve 115 vítimas, contra 73 de janeiro a abril deste ano.
Três perguntas para
Fábio de Cristo,
doutor em psicologia e administrador do Portal de Psicologia do Trânsito
O que leva os condutores a cometerem barbaridades no trânsito?
São várias razões. Desde razões psicológicas de cada indivíduo, seu jeito impulsivo, que caracteriza sua personalidade, passando pela situação do próprio trânsito, que pode produzir agressividade devido ao calor e ao congestionamento, até às condições ruins da infraestrutura do trânsito, que terminam por obrigar motoristas e pedestres a se comportarem perigosamente, como na falta de sinalização e na ausência de passarelas.
A sensação de impunidade atrapalha?
A ausência de punição pode facilitar a percepção da pessoa de que ela pode tudo. Ocorre um rebaixamento das próprias restrições morais. O indivíduo se convence a fazer coisas erradas no trânsito, porque acredita, por exemplo, que não vai acontecer nada: ;são só cinco minutinhos e ninguém vai estacionar nessa vaga de idoso, o governo não fiscaliza, por isso, faço errado;. Isso se chama desengajamento moral. Fazer uma coisa errada sabendo que está errado para obter um benefício próprio circunstancial. A falta de punição pode incentivar que as pessoas a se desenganarem moralmente.
Temos mecanismos de educação suficientes para a conscientização no trânsito?
Não. De maneira geral, as instituições governamentais não cumprem seu papel com eficiência e eficácia. Caso contrário, não teríamos altos índices de acidentes no Brasil. Um dos maiores do mundo e da América Latina. Não há investimento em educação de maneira sistemática, planejada, contínua e articulada entre outras instituições e atores sociais.