Jornal Correio Braziliense

Cidades

Arquitetos e urbanistas se preocupam com a conservação de Brasília

Arquitetos e urbanistas de gerações distintas se preocupam com a conservação do Plano de Lucio Costa. Invasões de áreas são um dos aspectos que mais incomodam os defensores do tombamento


Como cidade viva, Brasília pulsa. Precisa conservar a memória, viver o presente e o maior desafio, pensar o futuro. Como conciliar o título internacional, o tombamento local e federal e as mudanças que a sociedade vai demandando? A cidade tornou-se centro da preocupação de diferentes gerações de arquitetos. A ocupação irregular, o transporte público, o excesso de carros e a apropriação do espaço público estão no centro das discussões de quem pretende manter a cidade com as ideias vivas de seus mentores.

[SAIBAMAIS]Urbanista e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), José Carlos Coutinho chegou à cidade em 1968 para participar da reestruturação do Instituto de Artes da UnB. Veio para ficar seis meses, mas se envolveu de tal maneira que se tornou brasiliense de corpo e alma. Quase 50 anos depois, ele se incomoda quando anda pela cidade e vê algumas deformações da proposta original. ;A apropriação do espaço público para interesse privado é uma desfaçatez. São construções nos corredores de livre circulação, prédios que impedem a passagem pelos pilotis como se a área fosse privada. É um peculato da área pública. Isso é de uma agressividade;;

Coutinho acredita que o título da Unesco consegue inibir a ocupação desordenada maciça no Plano Piloto. Ele defende que os próximos 30 anos serão de conservação se houver investimento na educação dos gestores e da sociedade. ;Tem que começar educando os políticos, os administradores das cidades. A gente vê abusos do próprio poder público, como carros de polícia estacionados em gramados, nas ciclovias.; Para Coutinho, o planejamento é essencial. ;Temos que manter as escalas de Lucio Costa, os horizontes, a vegetação. E isso é possível se houver um planejamento para canalizar as forças de crescimento. Esse crescimento não pode ser espontâneo, ditado apenas pela ganância dos especuladores.;

O fotógrafo e urbanista Luis Humberto está em Brasília desde 1961. Como arquiteto, foi coautor dos primeiros prédios da UnB com Alcides da Rocha Miranda. Em 1966, no entanto, Luis Humberto decidiu dedicar-se à fotografia, área em que ganhou projeção nacional. Como fotojornalista, trabalhou em diversos veículos de comunicação nacionais. Sempre foi um admirador de Brasília. ;Eu vim pelo encanto da cidade. Como arquiteto, eu queria viver em uma cidade que eu pudesse contemplar o silêncio, o cantar dos pássaros e a sombra das árvores. Hoje não dá mais. Se você aproveita a sombra de uma árvore, pode ser assaltado.;

Sobre o futuro, Luis Humberto é reticente. ;Nos próximos 30 anos, não vou estar aqui para ver o que aconteceu, estarei em outros ares;. Ele acredita que a política de ocupação adotada, principalmente, durante a gestão de Joaquim Roriz, com a doação de lotes, prejudicou a cidade. ;Não condeno quem veio. Em um país cheio de pobreza, oferecer lote era um atrativo. Mas tinha que oferecer trabalho também;. Para ele, o título da Unesco e o tombamento vão permitir a conservação só do Plano Piloto. ;Será como a Havana Vieja. Conserva o centro para o turista olhar;.
Sustentabilidade

Transporte público eficiente e abrangente, sustentabilidade, integração social e redução das desigualdades estão no topo da lista de urgências que a nova geração de arquitetos de Brasília elenca para a cidade. Se hoje o sonho moderno completa 30 anos do título de Patrimônio Cultural da Humanidade, amanhã será preciso pensar em como não transformá-lo em um pesadelo. E para os arquitetos Eduardo Sainz, 30 anos, Gabriela Bilá, 27, e Raffael Inneco, 37, o trabalho passa por ideias que não incluem só arquitetura, mas inclusão social e meio ambiente.

Eduardo Sainz é boliviano e veio para Brasília há 7,5 anos para projetar uma casa para parentes, brasilienses. Foi ficando, trabalhou em outros projetos e adotou a cidade. Abriu escritório, casou com uma arquiteta brasiliense e passou a desenvolver projetos na capital. O mito moderno do qual tanto ouvira falar na universidade adquiriu feições reais e bem diferentes daquelas exibidas nos livros. Foi choque de realidade, no bom sentido. ;Ela tem uma identidade própria, é uma cidade que funciona de forma muito autêntica e exclusiva. Não é similar a uma metrópole, mas é uma capital. Não é uma cidade de interior, mas também não é uma cidade grande. É uma cidade planejada para aquela época, os anos 1950 e 1960 e que hoje tem muita deficiência para o estilo de vida contemporâneo;, acredita.

;Gentrificação;

Quando Brasília foi planejada, preocupações com meio ambiente e transporte se resumiam aos canteiros arborizados e as vias largas para os carros. Hoje, essas duas noções estão bem distantes daquele pensamento. ;Naquela época, a sociedade não tinha questionamentos energéticos, de sustentabilidade, de demografia, de inclusão social. A cidade funciona super bem para um cidadão classe B%2b, classe A, uma família com três carros, mas vejo uma certa deficiência com esse fenômeno da gentrificação;, diz Sainz.

Fenômenos como Águas Claras e os condomínios do Jardim Botânico são, para ele, uma gentrificação à brasileira: os preços dos imóveis e do custo de vida ficam tão elevados nos centros privilegiados que antigos moradores são obrigados a encarar opções mais baratas e cada vez mais distantes de seus locais de trabalho.
Alternativas

Para a arquiteta e designer Gabriela Bilá, autora do Novo guia de Brasília, esse mesmo fenômeno é responsável por uma certa falta de diversidade no Plano Piloto. Bilá não se cansa de bater na tecla do transporte de qualidade e acessível como solução para boa parte dos problemas de Brasília. Se os últimos 30 anos enalteceram o carro, está na hora de as próximas três décadas darem lugar ao ônibus, metrô e bicicleta. ;O real problema é a falta de transporte público e a segregação em relação às cidades satélites. Se a gente conseguisse vencê-lo, conseguiria dar um salto cultural forte, porque iria realmente misturar todo mundo;, garante. ;Agora, falta o interesse de focar nisso com políticas públicas. Toda vez que se fala em incrementar o transporte sempre, é para aumentar via, criar mais estacionamentos, o tipo de coisa que só favorece mesmo o carro.;

Bilá nasceu na capital e estudou arquitetura na UnB. Filha de imigrantes que vieram do Norte e Nordeste, cresceu como uma típica brasiliense. Aos 18 anos, passou no vestibular e ganhou um carro. Foi preciso sair do Brasil e morar na Alemanha e na Holanda para mudar de postura. Quando voltou, a arquiteta decidiu ficar um tempo sem carro e passou a andar a pé, de ônibus e de bicicleta. Descobriu outra Brasília. No comércio da quadra onde mora, se deparou com lojas que nunca havia percebido. Da janela do ônibus, viu a paisagem em outra velocidade e por outro ângulo, desenvolveu um olhar mais atento e conseguiu reparar detalhes impossíveis de serem vistos quando se está ao volante. ;A maneira como você se desloca pela cidade altera sua percepção;, diz.

Para a arquiteta, uma situação ideal quando Brasília comemorar os 60 anos do título da Unesco seria ter o Plano Piloto como um centro histórico dos anos 1950, assim como o centro de Ouro Preto (MG) ou o Pelourinho, em Salvador (BA), são referências históricas do período colonial. ;E com uma integração através do transporte para que tudo que está em volta se desenvolvesse de uma forma legal e não como uma bolha. Só com transporte chegando em todos os lugares e educação, única via para reduzir as desigualdades, outras pessoas teriam acesso ao Plano Piloto. Hoje é praticamente homogêneo o tipo de pessoas que moram aqui;, analisa a arquiteta.
Diferente

O fato de Brasília ter nascido de um projeto, de alguém ter pensado na cidade como um local no qual pessoas iriam morar e trabalhar encantava o arquiteto Raffael Innecco desde pequeno. Além disso, quando viajava de férias, voltava impressionado com o quanto sua cidade natal era diferente. Não à toa abriu a BSB Memo, uma loja de objetos de design inspirados nas formas e nos símbolos da capital. Formado em arquitetura pela UnB, ele estava com 7 anos quando Brasília foi inscrita na lista da Unesco. De lá para cá, viu a cidade mudar junto com seu olhar, que passou, ao longo dos anos, de menino para adolescente e para adulto. ;Fico triste porque acho que a gente está muito aquém de dar a Brasília o respeito que ela deveria ter. Em especial, nas partes comerciais da cidade. A gente vê muito descaso e falta de compreensão de qual era a ideia que Lucio Costa tinha para a cidade;, lamenta.

A falta de compreensão do projeto original resulta em comentários como ;Brasília não deu certo;, mas Innecco rebate com a crença de que, na verdade, a cidade está muito à frente de seu tempo. ;A gente ainda vai demorar algumas décadas para as pessoas valorizarem a ideia inicial;, acredita. ;Fico pensando em como essa parte dos comércios locais poderia ser uma coisa muito mais integrada com as quadras residenciais. A gente vê várias iniciativas nesse sentido, mas ainda há pessoas brigando para mudar essa ideia e fazer uma fachada fechada pra quadra, tratar aquilo como se fosse uma fachada de serviço.;

Também causa incômodo no arquiteto a maneira como tem sido deturpada a sinalização urbana idealizada por Danilo Barbosa nos anos 1970 e hoje incorporada ao acervo de design do Museum of Modern Art (MoMA) de Nova York. ;A gente perdeu o respeito por todo um projeto, principalmente nesses sistemas viários novos no final da Asa Sul: a sinalização não usa a linguagem e o padrão desenvolvidos para a cidade. É uma pena, porque é uma coisa que faz parte da nossa identidade;, aponta Innecco.

Influência

O Plano pode ser uma ilha, mas Innecco acredita que o DNA urbanístico contaminou cidades como Ceilândia, Taguatinga e Sobradinho, com preocupação de manter canteiros centrais grandes e faixas largas. No entanto, regiões mais recentes perderam essa preocupação. ;Em Águas Claras, o plano urbanístico já foi feito de forma a especular o valor imobiliário de forma tão agressiva que não tem esse olhar da vivência da cidade, com a vegetação etc. E vai piorar;, afirma. Brasília nascer de um planejamento e acabar protegida por um título da Unesco foi um fato único e raro no país. Pouca coisa hoje, lembra Innecco, é tratada da mesma forma. ;É tudo muito aos trancos e barrancos. Primeiro tem um assentamento e depois vai resolver o problema causado.;


Comemoração oficial

A Secretaria de Cultura celebra hoje os 30 anos do título de Patrimônio Cultural da Humanidade com a sanção da Lei Orgânica da Cultura (LOC) e uma nova edição do Prêmio José Aparecido de Oliveira. A nova lei institui a adesão do DF ao Sistema Nacional de Cultura e prevê mecanismos de desburocratização e facilitação do acesso aos recursos para a área. ;Há muito o que se celebrar, mas também é um momento de reflexão sobre nossa responsabilidade diante do bem público e, principalmente, de ação para valorização dos nossos espaços culturais;, acredita o secretário de Cultura, Guilherme Reis. Segundo ele, a LOC é um grande avanço para artistas e profissionais da cultura. ;É um grande avanço de modernização legal que cria um sistema distrital de cultura e vários instrumentos que possibilitarão cuidar melhor desse patrimônio.;


Para saber mais

Relatório a cada dois anos


Cabe ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) encaminhar, a cada dois anos, os relatórios ao Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco. O documento é feito com o GDF.

Nesses 30 anos, o governo brasileiro mandou 12 relatórios ao organismo internacional. Em 1993 e em 2012, a Unesco enviou técnicos para fazer um monitoramento extraordinário devido a denúncias de desvirtuamento. Após a visita de 2012, o relatório fez algumas conclusões, entre elas, sugeriu a aprovação imediata do Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB), manter o máximo de seis andares nos prédios do Plano Piloto, proibir construções residenciais na orla do Lago Paranoá, criar transporte público de qualidade para evitar o uso de transporte privado e melhorar a infraestrutura das cidades-satélites.

De acordo com o superintendente do Iphan-DF, Carlos Madson Reis, para preservar o conjunto urbanístico da cidade, duas portarias foram publicadas. A n; 166/2016 complementa e detalha a de n; 314/1992. Estabelece, por exemplo, quantos metros um prédio pode ter ; antes, só tinha a quantidade máxima de pavimentos. Estabelece também a consulta do Iphan em obras rodoviárias. ;As cidades têm dinâmicas, mudam porque a sociedade muda. A geração da década de 1960 é diferente da de hoje. O que temos que fazer ; e estamos fazendo ; é caminhar para o melhor entendimento dos diversos agentes envolvidos na urbanidade;.