Cidades

Documentário mergulha na vida do médium João de Deus

Cineasta carioca Candé Salles se propõe a contar o cotidiano de um centro de tratamento espiritual que recebe milhares de pessoas por ano

Ricardo Daehn
postado em 12/03/2018 06:00
João de Deus
Com o projeto de cinema de transformar a trajetória do médium João de Deus em documentário, o cineasta carioca Candé Salles se viu numa encruzilhada durante uma visita à Suíça, há cinco anos . Numa adiantada fase de gravações, ele notou que havia uma certa resistência por parte de João Teixeira de Faria, conhecido como João de Deus, que, por vezes, percebia a câmera e não se mostrava presente por inteiro. Num breve diálogo, as coisas se resolveram. ;Tenho que filmar tudo;, ponderou o diretor, ao que João de Deus questionou: ;Você vai fazer um filme sobre a verdade?;. Candé respondeu que sim, e João foi direto: ;Então, pode filmar o que quiser;. O resultado de tanta liberdade poderá ser conferido na próxima quarta no filme João de Deus ; O silêncio é uma prece, exibido gratuitamente no Cine Brasília (EQS 106/107), às 20h30. Para que se tenha acesso à sala, senhas serão distribuídas a partir das 14h.

Sem definição de limites e atento aos movimentos na Casa Dom Inácio de Loyola (sede para os feitos de João de Deus), Candé Salles partiu para a investigação de fenômenos que desafiam a mera racionalidade, como a forte impressão sentida diante da cura da mulher de um amigo, que disse ter superado um câncer na cabeça graças a João. Começaram aí a pesquisar o poder emanado pelo médium que fixou residência em Abadiânia (interior de Goiás).

Ao consultar sobre a disponibilidade de João para a realização do filme, que tem duração de 80 minutos, Candé assumiu uma missão: teria que buscar uma espécie de autorização do Doutor Augusto de Almeida, espírito costumeiro na lida de João de Deus. ;Falei da minha vontade com o filme, sobre a escolha do tema, e fui surpreendido quando ele disse: ;Fui eu que te escolhi;. Houve, então, a sinalização, mas ele me alertou que eu estava ;sujo;, completando : ;Deixa eu te limpar;. Ali, começou minha viagem de autoconhecimento e o processo de entendimento;, observa o cineasta.

O realizador não tem dúvidas sobre o sucesso da empreitada. Mostrado no Festival do Rio e com direito a três sessões lotadas no MIS (São Paulo), O silêncio é uma prece repercutiu. Marcado pelas cores azul e branca na concepção visual, uma lembrança da liberdade e da igualdade, o longa foi feito com baixo orçamento. ;O filme reflete um colorido que combina com a representação de alegria. É um filme de amor. As pessoas me agradeciam, abraçando bastante. Fiquei feliz. Filmar o sobrenatural é algo difícil. Muitos entendem e se sensibilizam;, comenta o diretor.

O longa-metragem traz farto material inédito, com apoio apenas de uma imagem de arquivo, registro do encontro de João de Deus com Chico Xavier. ;Eles eram amigos e se adoravam;, avalia Candé Salles. Na condição de cineasta, o diretor travou contato com o homem que, analfabeto funcional (é notório que João não lê nem escreve), domina uma prática escorada em fundamentos de pureza. ;Fui arrebatado, no coração, por sentimentos de paz, amor e leveza. Em Abadiânia, fiquei admirado com a casa da sopa, destinada a necessitados, e com a tranquilidade alcançada na casa de meditação;, comenta o diretor. ;Na casa de meditação, vi as ondas de amor e de saúde. Presenciei a realização de vários desejos dos frequentadores;, reforça. Viagens a cada mês, além de uma temporada durante a qual morou na Casa Dom Inácio de Loyola por meio ano, formataram a visão de Candé Salles, cujo filme terá pré-estreia em maio.

;Fui lá para fazer um filme. Não acreditava necessariamente no trabalho dele. Todas as descobertas foram muito orgânicas. E a verdade filmada está lá. Vi muito milagres: pessoas foram curadas na minha frente. Dia a dia, vi as mensagens do João de Deus para os pacientes, sempre repetidas com o mesmo entusiasmo;, explica. Católico, mesma crença que orienta João de Deus (que, recentemente, teve uma filha batizada), o cineasta conta que ficou adepto da ;passiflora; (medicamento extraído da natureza e com manipulação em farmácia local). ;É algo que traz muita paz, serve como guia e nos limpa. Uso como uma espécie de ato energético, que estimula nossa conexão com valores positivos;, avalia.

O cineasta salienta que João de Deus é um ;apaixonado pela obra de médicos; e que, na Casa Dom Inácio de Loyola, os funcionários são encorajados a reforçar que as pessoas que passam por lá nunca abandonem consultas e tratamentos médicos. ;Ele defende medidas em paralelo. João ama médicos, profissionais que ele respeita demais e que considera os ;verdadeiros médiuns de Deus;, sempre dedicados, nas 24 horas de cada dia;, sublinha.

A roteirista Edna Gomes, que há mais de sete anos convive com o médium

Roteiro da cura

Integrada à rotina do médium há mais de sete anos, a roteirista Edna Gomes conta que parte importante na espinha dorsal do longa está relacionada a constatações de cura. ;O tempo de cinco anos para o filme trouxe essa possibilidade. A ideia foi mostrar o olhar macro das pessoas, elas têm que olhar para dentro de si. Buscamos mostrar o que é o silêncio no processo de cura e reforçar o que João, um verdadeiro missionário de Deus, diz: que a cura está dentro de cada um. Há algo inexplicável na obra dele, ele tem enorme magnitude;, conta Edna, que assina o primeiro roteiro. Estudiosa incansável do espiritismo, Edna ressalta que chegou à missão atual por um processo de dor emocional. ;Tinha algo de soberba e, antes, trazia um olhar muito individual;, admite.

Em paralelo às obras de caridade, a vida pessoal de João de Deus está repassada no documentário. Há 19 anos juntos, Ana Teixeira e João de Faria viram a câmera de Candé Salles captar até mesmo o pedido de casamento, feito por Ana, há três anos. Mesmo a fase difícil, quando o médium seguiu para o Hospital Sírio-Libanês a fim de tratar de um câncer no estômago, está no filme. ;Teve enorme valor testemunhar o amor lindo e o companheirismo de João e Ana, exposto pela primeira vez no filme. Foi gratificante perceber como me confiaram a intimidade;, diz o cineasta.

Tratamentos visíveis e registrados em depoimentos para o filme marcaram Candé Salles. ;Vi muita gente sair sem nada de dor e também acompanhei relatos incríveis. No João de Deus, detectei ;ego zero;. Ele nem tem vontades para si. Está sempre preocupado em entender as necessidades dos outros. Ele se doa demais, pelo próximo;, descreve o cineasta. Aos 42 anos, assume ter sido ;contaminado;, outrora, pelos universos do cinema e da moda. ;É onde se quer sempre o melhor;, diz. No currículo, Candé Salles traz certo paparico do júri popular do 22; Festival Mix Brasil (2014), quando o longa anterior, Para sempre teu Caio F. , foi premiado como o melhor da mostra.

Com a produção de João de Deus ; O silêncio é uma prece, o diretor percorreu circuito em cidades da Alemanha, da Suíça e dos Estados Unidos. ;A partir do filme, mudei minha postura com os outros. Entendi que coisas, objetos não são importantes. Não importa cargo profissional, a bolsa que alguém usa, a aparência. Passei a dar mais carinho e atenção para os outros. O gesto de estender um prato de sopa para quem precisa, por exemplo, é tão modificador. Com o filme, passei a olhar para todos. Me atento a atos que possam ajudar as pessoas;, afirma.

O cineasta Candé Salles, ao lado de João de Deus: cinco anos para produção do filme

;Se políticos e ricos fizessem o mesmo que João de Deus, com medidas beneficentes, estaríamos muito melhor;
Candé Salles, cineasta

Entrevista

>> João de Deus

O que levou o senhor a aceitar a produção de um filme?
A produção do filme O silêncio é uma prece retrata a verdade sobre o meu trabalho, e isso o diretor Candé Salles e a roteirista e jornalista Edna Gomes souberam revelar muito bem. Fiquei muito feliz com o resultado do documentário.

Como lida com a condição de atender celebridades?
Eu não me importo se é ou não celebridade, eu me importo com pessoas e todos, na Casa de Dom Inácio, são tratados igualmente. Eu sigo, na minha trajetória, a minha missão, com Deus ao meu lado.

Como percebe as desconfianças de autenticidade que podem cercar seu trabalho?
Eu não ligo! São 65 anos me dedicando ao próximo, me dedicando o máximo possível em levar amor para as pessoas. A minha verdade é o amor incondicional que sinto por Deus.

Que riqueza brota da filantropia?
A felicidade brota das coisas simples. A filantropia é o maior bem que podemos fazer aos outros. Eu passei fome e o que eu posso fazer enquanto for vivo é alimentar quem precisa. Por isso, fundei a Casa da Sopa em Abadiânia, presidida pela minha mulher, Ana Teixeira.

Há pessoas que carregam o dom do não. Houve quem não se curasse diante de seus esforços?
Eu não curo ninguém, quem cura é Deus. Eu sou apenas o seu humilde missionário que foi escolhido por Ele. Se as pessoas não tratam de sua alma, eu não consigo fazer milagres. A cura está dentro de você. A pessoa deve perceber quando sua alma lhe mostra o caminho. Apenas escute-a, e o resto ficará bem.

Que conselho daria a quem resiste procurar por cura?
Eu não dou conselhos para quem resiste em procurar o seu silêncio.

Como o senhor lida com a fragilidade da morte? Qual o aprendizado quando esbarra com tropeços e mortes durante seus procedimentos (se for o caso)?
A única certeza que eu tenho é da morte, e não tenho medo dela. Eu sou apenas um servo de Deus. Nunca perdi ninguém durante as minhas intervenções espirituais, porque tenho as entidades de luz ao meu lado que iluminam a todos que estão na Casa de Dom Inácio. Eu sou um homem de fé!

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