Cidades

Familiares e amigos se despediram da jornalista Valéria de Velasco

Além da carreira em redações, ela deixa um legado de combate à violência e ajudou a construir redes de apoio para vítimas

Ana Maria Campos, Isa Stacciarini
postado em 18/04/2018 06:00
Emocionadas, dezenas de pessoas acompanharam o cortejo durante a tarde, no Cemitério Campo da Esperança, na Asa Sul, e deram adeus à jornalista

Os olhos de Valéria de Velasco revelavam uma dor contida, mas eterna, transformada em luta. A jornalista carregou, por 25 anos, o luto pela perda de Marquinho Velasco, o adolescente de 16 anos espancado até a morte por uma gangue que se autodenominava Falange Satânica. Praticado por jovens de classe média, o crime virou símbolo nacional da violência em Brasília e Valéria tornou-se porta-voz de uma batalha contra a impunidade e em defesa das vítimas e dos desamparados.

Apesar de carregar um sofrimento tão intenso, Valéria nunca perdeu a ternura, como descreve a diretora de Redação do Correio, Ana Dubeux, amiga de mais de três décadas. Valéria estava sempre aberta a um gesto de carinho. Tinha um jeito delicado de confortar os colegas, mesmo que fosse apenas com um sorriso tímido.

Dedicou às três filhas, Taissia, Usha e Tatiana, aos cinco netos e ao bisneto o aconchego de mãe. Era assim também com os amigos. ;Ela, a partir dali (perda) fez da paz ; luta diária por Justiça ; sua grande aliada;, escreveu o amigo, também jornalista, Marcelo Abreu, em comovente texto no Facebook.

Amiga e parceira de trabalho no Correio, a jornalista Cristine Gentil conta que Valéria soube sobreviver às perdas e consolar: ;(Valéria) sempre me alertou para a brevidade dos atos, dos fatos, da vida, do riso, do pranto. Sempre me disse para ser livre e leve. Dizia que aquilo passava, e passava mesmo;, diz Cristine. ;Ela já havia aprendido que a vida é para os fortes, mas que os fracos e os injustiçados precisam ser amparados, consolados, abraçados. Fazia isso como ninguém. Sabia que a justiça se agarra na unha porque não vem sozinha, nem por obra e graça do Estado;, completa.

Natural de João Nepomuceno (MG), Valéria trabalhou por mais de 10 anos no Correio Braziliense

[SAIBAMAIS]Valéria se tornou uma guerreira. Antes da morte do caçula, em agosto de 1993, ela já combatia a violência em reportagens e edições jornalísticas. Foi uma profissional respeitada, capaz de produzir textos humanos e emocionantes. Na investigação sobre o crime, acompanhou passo a passo. Confrontou versões e exigiu justiça. ;Apesar de todo aquele sofrimento, Valéria sempre se manteve serena. Era uma ativista, mas sempre falava baixinho, pausadamente, expressando posições firmes;, conta o deputado Chico Leite (Rede), promotor de Justiça responsável pelo júri dos assassinos de Marquinho Velasco.

Depois, Valéria se uniu à escritora Gloria Perez e a outras mães e pais que perderam filhos para tentar mudar o país. Nesse trabalho, ao lado da autora de novelas, conseguiu apoio para alterar a lei de forma que homicídios qualificados ; quando há intenção de matar ; fossem incluídos no rol dos crimes hediondos. A legislação mais severa, aprovada depois, não valia para os assassinos de Marquinho Velasco, tampouco para o casal que tirou a vida da atriz Daniela Perez. Mas foi um esforço para tentar reduzir a impunidade, o que, no fim das contas, era uma tentativa de evitar mais dores, mais lágrimas e mais perdas.

Em dezembro, quando a morte de Daniela Perez completou 25 anos, a dramaturga postou uma mensagem em seu perfil no Facebook. ;Foi uma campanha de mães, uma campanha encabeçada por mães que haviam perdido seus filhos: Jocélia Brandão (de Minas, mãe da Miriam Brandão), as mães de Acari, as vítimas de Vigário Geral, a Valéria Velasco, de Brasilia, e tantas outras.;

Mudança

Em tempos sem internet, uma campanha como essa, para sensibilizar o Congresso, exigia muita sola de sapato. As mães conseguiram reunir 1,3 milhão de assinaturas, 300 mil a mais que o necessário, para protocolar a primeira proposta de emenda de iniciativa popular da história do país.

É impossível falar de Valéria de Velasco sem lembrar de seu drama porque, nas duas últimas décadas, a jornalista fez muito para ajudar quem enfrentou ou enfrenta tristeza semelhante. Numa entrevista há 10 anos, ela disse que vivia para evitar que outras famílias sofressem como a sua.

Assim, criou o programa de assistência a vítimas de violência, o Pró-Vítima, uma ação política sem contornos partidários. Enquanto Valéria esteve à frente dos trabalhos, 20 mil pessoas chegaram a ser atendidas por ano, em cinco cidades. Ela criou um protocolo de atendimentos que incluía assistências jurídica, social e psicológica. ;Talvez nem todos em Brasília tenham noção da importância de Valéria. Ela era um ícone, uma referência até internacional de defesa das vítimas;, aponta Alírio Neto, ex-secretário de Justiça e Cidadania com quem a jornalista trabalhou em dois governos, de José Roberto Arruda e de Agnelo Queiroz.

Carmen Gramacho, uma das amigas mais próximas, era também aliada nas lutas. Participaram de movimentos a favor do desarmamento, levaram cruzes à Esplanada dos Ministérios contra a violência e fundaram o Convive (Comitê Nacional de Vítimas de Violência). ;Valéria era capaz de tirar a roupa do próprio corpo para dar a quem precisasse. Era um ser de outro mundo;, afirma.

As duas têm um projeto juntas, ainda a ser lançado, o livro O Mapa afetivo da leitura no Distrito Federal. A publicação vai mostrar como os livros podem mudar a vida das pessoas. Para levantar informações, Valéria fez entrevistas em presídios, centros de ressocialização e escolas. O resultado desse trabalho, que conta também com a colaboração de uma das filhas de Valéria, Usha Velasco, será lançado no segundo semestre.

Dedicação

Amiga de Valéria, a jornalista Conceição Freitas contou que nunca se esquecerá dos dias de trabalho noite adentro. Segundo Conceição, Valéria sentiu a pior dor do mundo, a perda do filho, e, mesmo assim, continuou tendo forças para seguir na luta, apoiando outras mães. ;Ela era uma mulher de muita bravura e, ao mesmo tempo, de muita delicadeza;, detalhou, durante o velório, ontem, na Capela 6 do Cemitério Campo da Esperança, onde dezenas de pessoas seguiram o cortejo durante a tarde e se despediram da jornalista.

Marcelo Fernandes, também jornalista, trabalhou com Valéria no Comitê Nacional de Vítimas de Violência (Convive) e lembrou que ela tinha o sonho de reativar o trabalho em Ceilândia. ;Levo a integridade, a lealdade e o compromisso que ela tinha com o trabalho, com a vida e com os mais próximos;, ressaltou.

A terapeuta comunitária e assistente social Nair Meneses lembrou que a jornalista nunca perdeu a vontade de ajudar as pessoas. ;Ela era determinada, corajosa. Convivemos com a bravura de Valéria, que fez da dor a ajuda ao próximo;, destacou. Jornalista e escritor, Marcos Linhares guarda a generosidade de Valéria. ;Ela transformou a dor em amor. De uma simplicidade, era uma grande brasiliense e jornalista. Comprometida, pensava nas causas humanistas;, reforçou.

Pároco da Catedral Metropolitana de Brasília, João Firmino fez uma oração pela memória de Valéria. ;Ela não cobrava castigar o outro, mas trazia sempre a valorização e a defesa da vida. Era um ser humano preocupado com o valor do outro e exercia um papel fundamental enquanto jornalista;, destacou.

Trajetória

Valéria de Velasco nasceu em João Nepomuceno (MG), em 11 de setembro de 1944. Trabalhou no Correio na década de 1980 e foi subeditora de Cidades por 10 anos, nos anos 2000. Desde o ano passado, era colaboradora da Revista. Há 12 dias, se sentiu mal, foi socorrida e levada ao hospital, diagnosticada com aneurisma da aorta abdominal. Permaneceu internada até a madrugada de ontem.

Carmen Gramacho foi uma das últimas pessoas a conversar com Valéria. As duas estiveram juntas também na noite anterior à internação no hospital. A jornalista revelou um sonho que teve uma semana antes de passar mal. A mãe, que já morreu, a chamava e dizia que esperava por ela. Já no hospital, Valéria fez um pedido à amiga: ;Cuida das minhas florzinhas;. Referiu-se às três filhas. ;A Ana cuida de mim;, acrescentou, citando Ana Dubeux.

Horas antes de ser internada, Valéria se despediu da amiga jornalista. Pareceu intuição ou os sentimentos descritos nos versos de Renato Russo: ;É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã;. Deu um abraço apertado em Ana Dubeux, na redação do Correio, perguntou se ela estava bem e aconselhou: ;Se cuida!”

No enterro, o sentimento de todos era de que finalmente Valéria vai se reencontrar com Marquinho. ;Espero que, de alguma forma, ela encontre o meu irmão. Essa é uma ferida que nunca curou. Não curou em mim como irmã, quanto mais nela, como mãe;, disse a filha Taissia no momento da despedida.


;A jornalista Valéria de Velasco nos deixa a imagem de uma profissional competente, séria, mas principalmente a de uma mulher forte, que enfrentou as agruras da vida com coragem e determinação;

Rodrigo Rollemberg, governador


;Valéria era parte de uma geração de profissionais que ainda vê o jornalismo como instrumento de transformação social e de divulgação de valores como solidariedade, justiça e igualdade;

Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal


;Nós perdemos uma voz em defesa da cultura de paz e das vítimas de violência, imprescindível para nossa construção cidadã;

Erika Kokay, deputada federal e presidente do PT/DF


;Sempre vi a Valéria falar uma palavra que a gente fala muito e exercita pouco: eu quero justiça. Só isso;

Diaulas Ribeiro, desembargador do Tribunal de Justiça do DF


;Solicito transmitir nossos sentidos pêsames à família enlutada da ilustre jornalista falecida, na certeza de que encontrará a paz celestial prometida pelo Criador àqueles que defendem a vida e a liberdade neste breve estágio terreno;

Souza Prudente, desembargador federal


;Tenho carinho especial por Valéria, porque ela ajudou muito a Ceilândia, sempre se dedicou a quem precisava;

Maria de Lourdes Abadia, ex-governadora


;Tenho certeza de que a semente que ela plantou, de um mundo melhor, vai florescer. Espero que, de alguma forma, ela encontrei o meu irmão. Essa é uma ferida que nunca curou;

Taissia Pontes, filha

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