Cidades

Número de pessoas em situação de rua no DF cresce 20% em um ano

Segundo pesquisa da Universidade de Brasília (UnB), mais de 70% das pessoas em situação de rua no DF têm entre 4 e 8 anos de estudo. Crise econômica e problemas estruturais são a principal causa do aumento do número de pessoas perambulando nas vias, segundo especialistas

Hellen Leite
postado em 25/05/2018 06:00

A Rodoviária do Plano Piloto é o lugar onde há maior concentração de pessoas em situação de rua no DF

A vida na rua tem um marcador de tempo diferente, definido por perdas, indiferença e sofrimento. Foi assim com Jackson Silva Oliveira, de 29 anos. Sentado em uma calçada da Quadra 301 do Sudoeste, em frente a uma padaria, nas primeiras horas da manhã, ele espera que alguém pare e o ofereça um pão. Depois, se levanta e segue para estacionamentos, ali mesmo, no Sudoeste, na tentativa de ganhar algumas moedas para o almoço. "Dormir na rua é duro, uma realidade que não imaginei que iria passar", conta o homem, que, em outros tempos, trabalhou em oficinas no Entorno de Brasília.

Mariomar Ferreira, 55 anos, também mora por ali. Há um mês, ele saiu de casa, em Imperatriz (MA), a 1.084 mil quilômetros de Brasília, por causa de uma desilusão amorosa. "A minha ex-esposa me traiu, aí abandonei tudo. Ou era isso ou eu cometeria uma grande besteira", relata o aposentado por invalidez que recebe um salário mínimo mensalmente. Chegou à capital federal de carona. A vinda para o DF representa um recomeço. "Sou só eu no mundo. Vim apenas com os meus documentos e penso todos os dias em como recomeçar. Quero ter o meu canto, o meu quarto e só", diz o homem que chora ao relembrar o passado.

[SAIBAMAIS]Relatos como o de Jackson e de Mariomar são cada vez mais presentes na rotina das instituições que prestam assistência à população de rua. De acordo com a Secretaria de Estado de Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos (Sedestmidh), o número de pessoas em situação de rua aumentou 20% em um ano. Em 2016, eram aproximadamente 2,5 mil pessoas morando sob marquises, árvores ou viadutos. Em 2017, já passa de 3 mil indivíduos. E o número pode ser muito maior: organizações que trabalham diretamente com essas pessoas garantem que no Distrito Federal há mais de 6 mil pessoas nessa condição.

Apesar de ser bastante heterogênea, a população de rua tem histórias de vida que se repetem, marcadas por privações e inúmeras situações traumáticas. Por isso não cabem generalizações ou clichês como "está na rua porque quer". "Ninguém está na rua porque quer. A rua é o último grau de exclusão e de ruptura com a sociedade", explica o psicólogo Igor Alves, que coordenou, de 2013 a 2017, o serviço de abordagem social da casa de Acolhimento Santo André.

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Rua como última opção

A zona central da cidade é a área de maior concentração de moradores em situação de rua. Um estudo realizado pelo Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), constatou que os lugares onde há mais pedintes são a Rodoviária do Plano Piloto, as superquadras 306/307 Norte e lugares próximos a casas de abrigo no Gama. No entanto, segundo moradores e comerciantes de áreas administrativas mais nobres, como o Sudoeste e Octogonal, o número de pedintes também aumentou nesses locais.

Muitos deles dormem por ali para ficar perto do trabalho, por estarem sem dinheiro para passagem e aluguel. É o caso de Fábio de Oliveira, 38 anos, um ex-vendedor de loja de shopping, que hoje trabalha vigiando carros. "Conheço ex-gerentes, empresários, gente que tinha profissão, muitos morando na rua. E não por causa de droga. Uns usam droga, mas para a maioria o motivo é outro. É o pessoal que está aí por causa da vida mesmo, da crise", lamenta.

Foram os quatro anos de crise profunda que aumentaram a demanda pelos serviços sociais dessas instituições e, além disso, mudaram o perfil dos assistidos. "Temos recebido pessoas que tinham uma vida estruturada, uma casa, mas que foram despejados. Esse tipo de história não é difícil de aparecer. Eu acredito que por conta de tudo o que é um reflexo da situação do Brasil", diz a presidente da Casa de Acolhimento Santo André, no Gama, Fabiana Ferreira, que há 12 anos recebe pessoas em situação de rua em cinco casas espalhadas pelo Distrito Federal.

O número de abrigos é insuficiente para a quantidade de pessoas atualmente nas ruas. Segundo ela, os locais do tipo disponíveis no Distrito Federal não comportam nem 20% dessa população. De acordo com a própria Sedestmidh, há na capital apenas oito abrigos, três próprios e cinco conveniados, com 455 vagas. Cada uma das cinco unidades da Casa de Acolhimento Santo André, no Gama, Riacho Fundo e Sobradinho, tem capacidade para acolher 50 pessoas em um regime rotativo.

No entanto, as pessoas que precisam do serviço têm passado cada vez mais dias na casa e, consequentemente, o tempo de espera por uma vaga também aumentou. ;Isso não acontecia antes, mas atualmente temos mais de 50 pessoas esperando para entrar. Antigamente era mais vazio, sempre tínhamos condições de receber alguém, agora, as demandas espontâneas estão muito maiores e não conseguimos mais acolher ninguém;, detalha Fabiana.

Desemprego e crise afetam famílias inteiras

No trabalho diário com esse público, ela lamenta que mais gente seja forçada a dormir ao relento até se restabelecer financeiramente por causa do desemprego e da crise econômica. "Famílias inteiras estão indo para as ruas porque perderam suas casas, por falta de emprego, e estão se somando aos que já estavam em situação de extrema vulnerabilidade", contou. "Atualmente, temos ao menos três famílias, com pai, mãe e filhos, que buscaram ajuda para não ficarem na rua", detalha.

É o caso de Hélio Amado da Silva, de 47 anos, que está no abrigo junto com a esposa, Norma Suely Araújo Brito, 30. Ele, ex-empresário, em outros tempos, dono de uma churrascaria em São Paulo. Ela, ex-corretora de imóveis. Atualmente, os dois vivem na casa de acolhimento, depois que uma briga judicial culminou no bloqueio dos bens do casal. "A gente tinha só um carro, dormimos, onde dormimos muitas noites. Mas não tínhamos mais dinheiro para pagar o IPVA dele, aí um dia, em uma blitz, aprenderam a Meriva", conta.

Sem casa, sem o carro que servia de teto e com os bens bloqueados pela Justiça, Hélio e a esposa foram parar na Rodoviária do Plano Piloto. ;Lá me falaram que tinham um abrigo no Gama, que podia me receber e eu vim;, conta. ;É muito difícil viver nas ruas, as pessoas acham que o morador de rua é usuário de drogas, um bandido, mas muitos perderam tudo e só tiveram a opção de ir para a rua;, lamenta.

Desigualdade social

A alta do desemprego reforça em todo o país a tendência que mais pessoas percam a moradia - as próprias pesquisas de desemprego têm sinalizado um aumento do desalento, em que mais pessoas pararam de procurar emprego e saíram do radar do IBGE, sinaliza a professora do doutorado em política social da Universidade de Brasília (UnB), Maria Lúcia. "Houve um crescimento gigantesco do desemprego. São mais de dois milhões de desempregados de um ano para o outro, paralelo a isso tivemos uma redução dos investimentos das políticas sociais", comenta a doutora.

Para ela, a falta de políticas públicas para pessoas em situação de vulnerabilidade contribui para o aumento da população de rua. Da mesma forma, a falta de políticas para quem já está na rua agrava o problema. "Mais de um milhão de pessoas ficaram sem o Bolsa Família, houve redução dos programas Minha Casa, Minha Vida, redução dos investimentos de saúde e educação. Tudo isso fez com que a situação piorasse", comenta.

Reforçar as políticas sociais e mudar a visão que a população, de um modo geral, tem das pessoas em situação de rua é um dos principais desafios para reinserir essas pessoas na sociedade. "Não é simplesmente aumentar o Centro POP. É ter alimento, moradia, renda, educação e todos os direitos acessíveis, além de responsabilidade social da sociedade, que tem que compreender que as pessoas não estão na rua porque querem, a rua não é uma opção, ela é a última direção", comenta.

Ela conta que, em sua experiência de pesquisadora e assistente social, é possível observar que a maioria das pessoas em situação de rua não está na rua para usar drogas. "É o contrário. Quase todas as pessoas que estão na rua fazem uso de álcool e outras drogas, mas não foi o álcool e as drogas a causa principal da situação de rua. Na maioria das vezes, eles usam drogas para suportar a condição da rua, de fome, chuva e frio", relata.

Empregos para pessoas em situação de rua

Na tentativa de reinserir essas pessoas no mercado de trabalho, o Governo do Distrito Federal (GDF) publicou em março deste ano, a Lei n; 6.128, que reserva um percentual mínimo de vagas de trabalho em serviços e obras públicas para pessoas em situação de rua. De acordo com o texto, 2% das vagas de trabalho nas licitações de serviços e obras públicas distritais devem ser reservadas aos moradores em situação de rua, com exceção às construção de instituições financeiras e de segurança.

Segundo o autor do projeto de lei, o deputado distrital Ricardo Vale (PT), para ser elegível às vagas de trabalho, os candidatos devem estar inscritos em programas ou políticas públicas do Governo local e atender às qualificações exigidas para o exercício da atividade profissional pretendida, além como cumprir a carga horária exigida. "A participação no governo nisso, de fazer com que a cota seja preenchida, vai ser fundamental para que o morador tenha direito a ter essa oportunidade. Mas tem outra coisa que considero primordial, é a pessoa em situação de rua saber que vai poder sair dali e ter uma vida digna", finaliza o deputado.

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