Cidades

Baixas temperaturas no DF são desafio a mais para quem mora nas ruas

A presença de moradores de rua faz parte do cenário da Rodoviária do Plano Piloto, terminal que atrai entre 650 mil e 700 mil passageiros todos os dias

Luiz Calcagno
Luís Nova - Especial para o Correio
postado em 08/07/2018 08:00 / atualizado em 14/10/2020 12:46
Dados mais recentes mostram que a população de rua em Brasília fica entre 2,5 mil e 3 mil pessoas. Políticas públicas esbarram na diversidade dos grupos a serem atendidos
As baixas temperaturas dos primeiros dias de julho escancaram ainda mais a situação de vulnerabilidade de quem dorme na Rodoviária do Plano Piloto. Na plataforma inferior, do outro lado do Eixo Monumental, via N1, ao menos sete ficam embrulhados em cobertores, deitados em pedaços de papelão, cercados de caixas. O vento corta frio no horário em que a temperatura geralmente atinge a mínima. Os que já acordaram, transitam perdidos pelo monumento, procurando uma bebida quente para se aquecerem.

A presença de moradores de rua como Sebastião, 76 anos, faz parte do cenário do terminal que atrai entre 650 mil e 700 mil passageiros todos os dias. Deitado, encolhido, com os pés sujos, apoia a cabeça sobre a mochila, que vira travesseiro, e cobre o rosto com as mãos. Ele divide o banco com duas usuárias do sistema de transporte público. Um motorista de ônibus comenta a situação. “Trabalho em uma linha da rodoviária há dois meses. Todos os dias ele está aqui.”

Sebastião, 76, é cearense e mora no DF desde 1965. Tem dois irmãos na capital, mas diz preferir  viver nas ruasNatural de Mombaça (CE) e morador do Distrito Federal desde 1965, Sebastião tem irmãos na capital, mas não quer deixar a rua. “Gosto de passar a noite ao relento. Tenho coberta”, justifica. “Carrego o que posso na minha mochila, mas não gosto de levar muitas coisas. Quando ganho um cobertor extra, uso à noite e depois deixo para outro pegar”, conta. Ele se queixa da violência entre usuários de crack. “É só entre eles. Os outros se afastam, a polícia chega, e a confusão acaba.”
 
 Davi Pereira dos Santos tem 38 anos, a metade da idade de Sebastião, e vive também nas ruas. Há noites em que, por conta do frio, é impossível dormir. Ele explica que cada morador tem o seu lugar sob a plataforma da rodoviária. O dele é mais perto da via S1. Portador do vírus HIV, ele foi criado na rua. “Bebo minha cachaça, peço dinheiro e comida e é assim. Minha mãe mora em Buritis (MG), mas às vezes vem pra cá e passa a semana comigo.”

Ele empurra um carrinho de supermercado com pertences, um casaco e um pedaço de pau. Não tem cobertor. Conta que foi roubado e que, às vezes, o frio não o deixa fechar os olhos. “Às vezes gela, mas não gosto de passar em albergue. Só tem ladrão”, reclama. A maioria dos moradores ouvidos pela reportagem fez reclamações parecidas sobre as casas de acolhimento.
 
Davi, 38 anos, conta que, em alguns dias, é impossível dormir 

Doações

A aproximadamente 20 minutos de caminhada da Rodoviária, no Setor Comercial Sul, outros grupos de moradores de rua dormem. Eles estão enfileirados, também sobre papelões, cobertos até a cabeça, sob o letreiro vermelho gigante de uma loja de departamento na Quadra 7. Uma moradora de rua com o cobertor enrolado nas mãos diz não ter interesse em conversar. Uma idosa que está acordando pede que os repórteres se afastem. Trabalhadores passam apressados.

Em uma das garagens subterrâneas da região, em um canto, há um amontoado grande de papelões e cobertores. O material está misturado com lixo e restos de revista. Nas proximidades, três homens, na mesma situação de vulnerabilidade que os outros entrevistados, conversam. Estão alcoolizados e desconfiam, mas aceitam falar com a reportagem. O primeiro se identifica como Vieira Xavier, 42, e o outro é Cícero Moreira de Mesquita, 51. Eles contam que perderam os laços familiares.

Vieira veio a pé de Santa Catarina. Diz ter mãe, duas filhas e quatro netos. “É uma noite de cada vez”, afirma quando questionado sobre o frio nesta época do ano. Ele diz que é comum que religiosos e voluntários façam doações de roupas, bonés ou toucas, cobertores e calçados. “Estou esperando pra ver se eu consigo um”, fala, apontando para os pés. “Julho, agosto, esfria bastante, mas as doações ajudam muito”, garante.

Cícero diz ter perdido o emprego por conta do vício em álcool e não recebeu os direitos trabalhistas. “Sentimos frio à noite, principalmente agora. Mas muita gente trás sopa, um leite com chocolate, e até cachorro quente”, elenca. Ele tem consciência da situação em que se encontra. “Eu tinha de parar. Bebida é uma das piores drogas. Sem ela, a pessoa tem futuro. Com ela, o destino é a calçada, e a calçada é um lugar triste”, lamenta.
 
Cícero, 51 anos, é alcoolista e perdeu os laços familiares:

Direitos básicos  

O Distrito Federal tem entre 2,5 mil e 3 mil pessoas em situação de rua. Os dados fazem parte da projeção de um censo com essa parcela da população da capital, feito ainda em 2011. São os dados mais atuais. Segundo a professora do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília (UnB) Camila Potyara Pereira, a maior dificuldade de lidar com esse grupo é que ele é extremamente heterogêneo. “É composto por pessoas diferentes, com realidades diferentes e é impossível dar uma resposta única para a situação que vivem”, explica.

Outro problema das políticas públicas para essa parcela da população, segundo a pesquisadora, é apostar em situações paliativas como se fossem definitivas. “Um albergue, por exemplo, não resolve a situação. É necessário um conjunto de políticas públicas articuladas, universal, que atendesse os indivíduos sem preconceito. Políticas habitacionais com bairros estruturados e educação inclusiva. Muitas crianças nessa situação não conseguem ir para a escola, porque não têm uniforme ou um local para tomar banho”, exemplifica Camila. Em casos emergenciais, por outro lado, ela destaca a necessidade de políticas paliativas. “Em um período frio, é preciso ações emergenciais. Abrigos de qualidade, por exemplo. As casas de acolhimento podem trazer algum alívio”, avalia.

Alison Oliveira, diretor do Serviço de Acolhimento da Subsecretaria de Assistência Social da Secretaria do Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos do GDF, explica que existem casas de acolhimento para adultos e famílias; para crianças e adolescentes; para idosos; e outras exclusivas para mulheres. São 1.654 vagas, e o governo trabalha para criar outras 100. Segundo ele, como se trata de uma população flutuante, em que nem todos precisam ou querem utilizar o serviço, não é necessário um número de vagas igual ao setor da população.

“Além dos centros de acolhimento, temos vários serviços. Um deles é o de abordagem social. São 33 equipes especializadas para acompanhar essas pessoas.Vão atrás do público-alvo em todo o DF ofertar o serviço especializado da assistência. Mas essa abordagem não tem nada a ver com remoção dessa parcela da população. É um trabalho para levar a eles as garantias previstas pela política de assistência social. Identificamos as necessidades de cada um e oferecemos serviços e alertamos sobre direitos”, detalha.

O GDF também recebe esses moradores nos centros de referência especializados em assistência social e nos especializados para população em situação de rua, onde o visitante pode emitir documentos, tomar banho e consegue itens de higiene pessoal, agasalho e cobertor. “Somos responsáveis por uma política de Estado. As campanhas sociais e comunitárias, nós não fazemos. A ida a um centro não é um serviço de hospedagem. Ajudamos a buscar famílias, refazer laços, quebrar a lógica que colocou a pessoa naquela situação. Não podemos deixar que isso se transforme em uma política assistencialista”, ressalta.

Para saber mais  

Temperaturas baixas na seca
A ausência de nebulosidade no período da seca é o que provoca as noites mais frias no Distrito Federal. O fenômeno é chamado de perda radiativa. De acordo com a meteorologista do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmert) Naiane Araújo, em outras épocas do ano, as nuvens formam um cobertor sobre a cidade, impedindo que o calor do sol, acumulado durante o dia, se perca à noite. Mas, no inverno, o céu fica limpo. “Eventualmente, teremos uma frente fria vindo do Sul. Quando isso acontece, na retaguarda, vem sempre um ar mais frio que também ajuda a declinar a temperatura. Quem mora na rua, sente mais”, explica. Em 30 de junho, o Inmet registrou mínima de 10°C na estação do Sudoeste e de 6,8°C em Águas Emendadas; em 1º de julho, de 10°C e 7,9°C, respectivamente; e na última quarta, 12°C e 7°C. A sensação térmica pode ser igual ou mais baixa que a temperatura registrada. “A temperatura cai para o menor grau, normalmente, entre 6h e 7h. Com vento, a percepção pode ser de um frio ainda maior”, detalha Naiane.

Como ajudar

Confira aqui algumas instituições que doam agasalhos e cobertores a moradores de rua do DF: 
 
Igreja Batista Central de Brasília 
Reúne donativos que são repassados 
para igrejas evangélicas. Cada núcleo atua na sua região administrativa.
Endereço: SGAS, Quadra 603, Conjunto 19, L2 Sul, próximo à Casa do Candango
Telefone: 3038-4000

Comunidade Mariana Vinha do Senhor
Trabalha com sopão e doação de agasalho para moradores de rua, geralmente no Setor Comercial Sul. Recebe e também busca donativos para dar continuidade aos trabalhos.
Endereço: Quadra 8, Conjunto I, 
Casa 7, Setor Sul do Gama.
Telefones: 98118-0624 e 99303-3233

Central de Vagas da Sedestmidh
Serviço da secretaria que regula, acompanha e informa sobre a disponibilidade das vagas de acolhimento institucional do governo e de parceiros.
Endereço: L2 Sul 614/615, 
Lote 104, Asa Sul
Telefone: 3223-2656 

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação