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Referência no DF, unidade de queimados do Hran completa 30 anos

Saiba mais sobre a história do hospital, como a atuação numa tragédia que marcou a capital em 1989

Jéssica Eufrásio
postado em 26/10/2018 06:00
A ala de queimados do Hospital da Asa Norte foi aberta em agosto de 1988
Ao longo de 30 anos, a Unidade de Queimados do Hospital Regional da Asa Norte (Hran) transformou a vida de vítimas de queimaduras graves e acidentes químicos e biológicos. Milhares de pessoas do Distrito Federal e Entorno encontraram uma chance de viver de novo graças ao trabalho realizado na ala. Com o objetivo de celebrar as três décadas de cuidados oferecidos gratuitamente e os inúmeros casos de recuperação, pacientes, familiares e profissionais de saúde se reuniram ontem, no Grande Auditório do Hran, para relembrar essa trajetória e homenagear servidores que dela participaram.

Não por acaso, a história da ala se mistura à de Brasília. Um dos momentos mais marcantes vividos por funcionários do hospital data de 1989, poucos meses após a abertura do setor. Uma tragédia envolvendo a colisão de dois caminhões ganhou destaque nos jornais durante dias e demandou uma força-tarefa dos profissionais da unidade. O acidente aconteceu na noite de 22 de janeiro, no cruzamento da Via Estrutural com a pista de acesso à Rodoferroviária ; onde hoje é o viaduto Ayrton Senna. Catorze pessoas morreram na hora e mais de 60 ficaram feridas. O impacto, que provocou o atrito dos tanques de diesel, causou uma explosão, agravada pela presença, nos caminhões, de carregamentos de cachaça e outros produtos inflamáveis.

Um dos caminhões havia saído de Taguatinga. O outro, do município de Correntina (BA) rumo a Goiânia ; viagens que cobriam os 600km entre a cidade baiana e Goiás eram populares devido ao baixo custo paras as pessoas que iam em busca de trabalho. Dezenas de pessoas dividiam espaço com mercadorias na carroceria, sob uma lona usada para despistar a fiscalização rodoviária. A colisão entre os veículos provocou um cenário de terror. Em entrevistas, testemunhas relataram momentos de desespero. Vítimas rolavam no chão na tentativa de se livrar do fogo, gritavam de dor e corriam com roupas coladas ao corpo, em chamas. Alguns passageiros foram encontrados carbonizados, impossíveis de serem reconhecidos até pela perícia. Outros, apesar de terem sobrevivido, tiveram partes do corpo amputadas.

;Quando soubemos da notícia, pensamos que se tratava de um treinamento da Defesa Civil. Entretanto, ao chegar ao pronto-socorro, ouvimos muita gritaria. Foi uma catástrofe. Uma situação única, cena de guerra;, relata o médico José Adorno, 58 anos, cirurgião plástico da ala de pacientes queimados há 23 anos. Na noite do acidente, ele ainda era residente do segundo ano de cirurgia-geral e estava de plantão. ;As vítimas chegavam e eram deitadas no corredor, pois a unidade não tinha espaço para tanta gente. Lembro-me que houve um enorme sentimento de solidariedade. Profissionais de saúde que estavam em casa foram ao hospital para ajudar. Essa foi a maior experiência em medicina de urgência que já tive na vida;, conta o cirurgião.
A tragédia entre dois caminhões ocorreu em 1989

Ilegalidade

Maria Elisa Oliveira, 42, ainda era uma criança quando recebeu a notícia do acidente. Moradora de Correntina à época, ela dormia quando ouviu uma tia chegar em desespero avisando sobre a tragédia. Dois primos, sendo um deles bebê, um tio e uma tia dela estavam no caminhão que tinha deixado a cidade cerca de dois dias antes. Os quatro morreram na hora. ;Eles viajaram à procura de melhores condições de vida em Goiânia. Os boatos na Bahia eram de que todos haviam morrido. Foi uma comoção geral;, relembra Maria Elisa, hoje professora da rede pública do DF.

Os corpos chegaram irreconhecíveis ao município baiano. Várias famílias não souberam se realmente velavam os parentes. ;Até hoje, não temos certeza de que enterramos nossos familiares. Criamos uma fé de que sim, mas o único de que temos mais ou menos noção foi o meu primo, pois ele tinha uma deficiência no pé;, relembra Maria Elisa.

Hoje, ela critica as condições ilegais de viagem da época. ;O que mais me incomoda é lembrar como tudo aconteceu. No momento do acidente, a lona estava lacrada. Não sei como os sobreviventes conseguiram rasgá-la e sair sem mais sequelas. Viajei várias vezes assim quando criança. Nos sujeitávamos a ir nesses caminhões como contrabando, de certa forma. Os carros vinham cheios de sacos de alimento, e as pessoas, com mercadorias sobre elas. Antes da fiscalização, éramos amarrados lá dentro. Ficávamos debaixo da lona sem poder falar e ainda pagávamos por isso;, lamenta a professora.
Na ocasião, o Hran viveu momentos de guerra

Mobilização

Médica plantonista no dia da tragédia, Maria Célia Bispo, 57, relembra a movimentação no Hran. ;Meu plantão havia acabado de começar. Quando cheguei ao pronto-socorro, havia umas 10 ou 11 pessoas bastante queimadas, com roupas esfarrapadas. Nesse momento, uma porta de vidro grande, ao fundo, que dava para a rua, se abriu e mais gente entrou. É uma imagem que fica na memória. Acho que na guerra deve ser assim. Ninguém parecia saber o que era, mas houve uma grande mobilização.; Segundo ela, a unidade chegou a receber 77 vítimas. Do dia do acidente até alguns meses depois, 33 pessoas morreram.

Nos 28 anos de trabalho na ala, Maria Célia atendeu outras vítimas de casos notórios. Em 20 de abril de 1997, ela estava de plantão mais uma vez quando, de madrugada, um paciente com 95% do corpo queimado deu entrada no hospital. Incendiado por cinco jovens da classe alta de Brasília, o índio Galdino Jesus dos Santos chegou à unidade de saúde com queimaduras profundas, de segundo e terceiro graus. ;Percebemos que, realmente, ia ser um caso complicado. Naquele dia, houve uma peregrinação de entidades importantes no hospital. Foi lamentável o que aconteceu. A maioria das pessoas não sabe quão cruel é uma queimadura. Não é só um susto. Ele poderia ter morrido mesmo se elas não tivessem sido tão extensas;, avalia a médica.
Allana Krysna:

Relatos da sobrevivência

Vítima de um acidente quando tinha um ano e 10 meses, Allana Krysna, 19 anos, recebeu atendimento durante toda a vida na ala de queimados do Hran. A bebê brincava com um fósforo e o acendeu acidentalmente. De repente, o vestido e o moletom de algodão que ela usava entraram em chamas. A menina, à época, teve 47% do corpo queimado. As queimaduras só não foram piores porque o gel da fralda a protegeu. ;Minha mãe não sabe como começou o incêndio. Ela só me encontrou na ambulância. Minha irmã de 4 anos foi quem pediu socorro aos vizinhos. Passei 93 dias internada na ala de queimados. Estive na UTI, peguei pneumonia e quase não consegui sobreviver;, conta a produtora de mídias sociais.

Allana precisou de acompanhamento constante na unidade do Hran. Ela passou por 11 cirurgias reparadoras e, agora, começará as cirurgias plásticas. ;A equipe de lá sempre foi muito atenciosa e trabalha com muito amor, atenção e dedicação. A tecnologia da ala tem avançado muito. Somos todos muito gratos na família. Já passei aniversários lá, chamavam-me para confraternizações e cresci como uma criança comum. Não ligo para as queimaduras. Só tem cicatriz aquele que sobreviveu;, reflete.

Apoio

Chefe da ala de queimados por 22 anos, o médico Mário Frattini deixará o setor neste mês para se aposentar. Ele conta que, à época da inauguração, o local era uma subunidade da cirurgia plástica e, hoje, tornou-se um modelo que contribui, principalmente, com a diminuição dos índices de mortalidade. ;Queimados são pacientes muito complexos, não só pelas alterações orgânicas, como psíquicas, além de vários outros fatores. Trouxemos uma equipe multiprofissional e isso gerou melhora no tratamento. Também tivemos diminuição do tempo de internação, das sequelas e maior adesão ao tratamento. Acompanhamos alguns dessas vítimas pelo resto da vida;, afirma Mário.

Joagna Polliany Dias, 34, é uma dessas pessoas. A bancária recebeu atendimento no Hran durante 18 meses. Aos 22 anos, ela passou ao lado do fogão de casa com um frasco de álcool, que explodiu e provocou a queima de 11% do corpo dela. Joagna Polliany passou 30 dias internada na unidade de queimados, onde ficou isolada e se submeteu a cirurgias para procedimentos de enxerto. ;Para mim, nunca foi difícil falar sobre isso, mas, de tudo de ruim que acontece com você, é possível tirar um lado bom. Melhorei como pessoa e fiz muitas amizades bacanas;, conta.

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