Luiz Calcagno
postado em 13/11/2018 06:00
De um lado, pergaminhos medievais manuscritos por monges portugueses no século 14, guardados em uma sala com porta de cofre. Cuidadosamente envelopados, encerram nas páginas deterioradas, mas ainda legíveis, enfeitadas com iluminuras, a visão religiosa de uma época. De outro, livros com a temática de direitos humanos, ciências, história da ditadura no Brasil rasgados, recentemente, uma mensagem de ódio contra o conhecimento. O espaço é uma grande instalação para preservar obras raras e permitir o acesso controlado a tomos que têm valor histórico. Mas há também um acervo aberto ao brasiliense, abarcando inúmeras áreas das culturas e ciências.
A reportagem do Correio foi à Biblioteca Central (BCE) da Universidade de Brasília (UnB) para conversar com especialistas sobre a importância do livro na transformação da sociedade e saber por que algumas obras recebem tratamento diferenciado e outras nem tanto. ;O que eu penso sempre é que as obras consideradas raras de hoje foram o acervo geral de ontem;, comenta Raphael Greenhalgh, bibliotecário coordenador de formação e desenvolvimento de acervo (BCE). ;E uma obra recente que fale pela primeira vez sobre um assunto que venha a ganhar relevância no futuro, também se tornará importante como fonte de pesquisa de uma época;, completa.
Com a comparação, o bibliotecário estabelece uma ligação entre as obras que, pelo seu tempo ou características especiais,
Valor histórico
Greenhalgh destaca que a UnB criou uma série de procedimentos de segurança para tornar as obras raras acessíveis para pesquisa. É preciso agendar a visita com antecedência, por e-mail. Além disso, a pessoa precisa usar luvas e máscaras para manusear algumas das obras. Caneta é proibida. Tomar notas, só com lápis, para evitar riscos acidentais. Por questões de segurança, o interessado também tem de deixar a mochila do lado de fora.
Na antessala, há uma exposição permanente com uma série de livros e revistas e cartas expostos. Exemplares com dedicatórias de personalidades, como Carlos Drummond de Andrade e Cora Coralina, cartas trocadas entre JK e o político e escritor Carlos Lacerda e até a primeira edição do Correio Braziliense, publicada em Londres, em 1808.
Ao todo, o setor reúne 13.500 livros e 10 mil periódicos. A BCE tem um acervo de 1,5 milhão de itens. ;Existem uma série de pré-requisitos para definir o que é uma obra rara. Um deles é o método artesanal de publicação. Outro, o ano.
Qualquer obra no mundo até 1800 é rara. Mas, a imprensa só chegou ao Brasil em 1808; então, consideramos até 1900.;
Qualquer obra no mundo até 1800 é rara. Mas, a imprensa só chegou ao Brasil em 1808; então, consideramos até 1900.;
Entram na lista ainda primeiras edições de livros de escritores importantes, obras com gravuras de artistas de renome e, até, com dedicatórias escritas por grandes personalidades. ;Em uma primeira edição de Poesias completas, de Machado de Assis, há um erro tipográfico. Essa falha trouxe relevância para a obra;, explica o especialista.
Alvo de ataques
Em 4 de outubro, a UnB divulgou uma nota pública alertando da depredação de livros de direitos humanos, paganismo, história e ciências naturais disponíveis na BCE. À época, várias entidades e figuras políticas se posicionaram contra o vandalismo e cerca de 300 pessoas entre estudantes, professores e deputados distritais fizeram uma manifestação em repúdio à destruição dos livros. O mais danificado foi uma obra a respeito da ditadura militar no Brasil. ;A destruição dos livros foi algo sistemático. Foi muito simbólico pelas temáticas escolhidas e por acontecer em uma universidade que sofreu invasões e teve alunos e professores perseguidos durante a ditadura;, observa Greenhalgh.
Para o professor da Faculdade de Ciência da Informação e diretor da Biblioteca Central, Fernando Leite, a solução para a agressão é o próprio livro. ;O ato de vandalismo me deixou indignado. É a expressão do ódio a liberdades, ao pensamento, aos valores democráticos. Uma tentativa de intimidação e de silenciamento de ideias;, critica. ;Essa ignorância pode ser remediada a partir da informação contida nos livros. Temos de esclarecer que não existe uma única verdade, que é importante contextualizar os fatos historicamente e falar sobre direitos humanos;, destaca.
Saiba mais
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Pesquisas
O setor de obras raras fica no segundo andar da Biblioteca Central da Universidade de Brasília. Pesquisadores que precisem acessar as obras precisam marcar a visita com antecedência no e-mail obrasraras@bce.unb.br. O acervo está disponível digitalizado no site www.bce.unb.br. Para os curiosos, há uma exposição permanente na parte externa do setor com vários exemplares de livros e periódicos raros, incluindo revistas da década de 1960 que retratam a construção da capital federal.