Cidades

Mães detentas aguardam saída da Colmeia para amamentar bebês em casa

Correio conta a história e a esperança de detentas que esperam o cumprimento de decisão do Supremo Tribunal Federal que permite que elas possam sair do presídio feminino da Colmeia para amamentar seus bebês em casa

Jéssica Eufrásio
Isa Stacciarini
postado em 18/11/2018 08:00 / atualizado em 08/10/2020 14:49
Ilustração sobre mães presas no DF

“Às vezes, a vontade de chorar é maior que a de persistir.” Esse é o pensamento que atormenta Bárbara*, 38 anos, todos os dias. Ela conta os dias, as horas à espera de ser contemplada com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que concede prisão domiciliar a mulheres grávidas, lactantes e com filhos de até 12 anos. Além dela, há 139 internas da Penitenciária Feminina do Distrito Federal, a Colmeia, que podem ser beneficiadas com a medida. Caso isso não ocorra, Bárbara terá de entregar a filha de apenas 5 meses aos braços de outra pessoa em menos de 30 dias. Angustiada, a mãe busca formas de se preparar para esse difícil processo, caso não seja beneficiada.

Embora tenha engravidado fora da cadeia, Bárbara teve a filha depois de ser presa. Hoje, as duas vivem sob a vigilância constante do Estado. A vida da mãe se resume aos cuidados com a filha. Amamenta, borda as roupas da menina, sonha para que ela tenha na vida oportunidades que não teve. Também tenta não pensar no pior: se despedir da filha dentro de um mês. “Sofro só de me imaginar sem ela”, desabafa, com a voz embargada.

Essa foi a primeira vez que Bárbara deu à luz em cárcere. Detida aos cinco meses de gestação, ela terminou os exames pré-natais presa, acusada de associação para o tráfico. Antes disso, morava com o pai da filha. Condenado por comércio de entorpecentes, ele é interno da Papuda e ainda não conheceu a criança. “Ele só soube quando ela nasceu, em junho”, conta Bárbara, que também é mãe de uma jovem de 19 anos, um rapaz de 16 e um menino de 2. “Minha filha mais velha cuida dos menores. Ela teve de trancar a faculdade para conseguir fazer tudo.”

A interna da Colmeia interrompeu os estudos no 1º ano do ensino médio e cuidava da família com o salário de diarista. Antes de ser presa, morava em Valparaíso de Goiás, cerca de 40 km do centro de Brasília. Trabalhou em apartamentos de luxo de condomínios próximos à Vila Planalto, à beira do Lago Paranoá. “A pior coisa que aconteceu em minha vida foi parar neste lugar (Colmeia)”, lamenta.

Quando ainda estava grávida, Bárbara entrou com um pedido de habeas corpus, mas, mesmo como ré primária, com residência e emprego fixos, não foi beneficiada. Atualmente, alimenta as esperanças de não ter de entregar a filha, já que a decisão do STF vale para presas provisórias que aguardam o julgamento, como é o caso de Bárbara.

Ela e as outras sete presas ficam em uma ala especial, gradeada, destinada a mães que amamentam. No espaço, há 11 quartos, sem grades, cada um com cama e berço, destinado à mãe e ao filho. Elas também usufruem de uma área de convivência, com tapete emborrachado colorido, poltronas e uma tevê. As roupas e fraldas usadas nas crianças provêm de doações ou das famílias das detentas.

Bárbara quer um futuro diferente, longe do companheiro, que também é pai do filho de 2 anos dela e com quem esteve desde 2016. “Sonho em trabalhar. Quero voltar para casa e levar uma vida normal, como eu tinha antes de tudo o que aconteceu. Sabia que ele fazia coisa errada. Se eu pudesse voltar atrás, faria tudo diferente. Mudaria a minha vida e a dos meus filhos”, diz, em meio às lágrimas e com a bebê de 5 meses no colo.

Cotidiano


Além dos cuidados com os filhos, a vida das lactantes da Colmeia consiste em limpar as instalações da unidade, participar de aulas para completar os estudos regulares e frequentar cursos, como os de crochê e bordado, por meio dos quais elas produzem roupas para os próprios filhos. De certo modo, essa rotina, que faz parte das obrigações das internas, termina por minimizar alguns pensamentos sobre a possibilidade de se separar do filho.

Assim como Bárbara, Mônica*, 21, vive o  mesmo dilema. A jovem teve a terceira filha, de 1 mês, dentro da carceragem. Enquanto estava grávida, foi autorizada a cumprir prisão domiciliar. O plano era de terminar a gestação em casa, onde também cuidaria da primeira filha, de 4 anos. Entretanto, apesar do direito conquistado, ela retornou para o presídio, acusada de tráfico na Rodoviária do Plano Piloto, 27 dias depois. Em 9 de abril, a jovem foi flagrada enquanto usava crack com um conhecido. O usuário declarou que Mônica era a responsável pela droga e ela acabou presa outra vez.

Durante toda a vida, Mônica passou por dificuldades. A então moradora de Planaltina (GO) estudou até a 3ª série do ensino fundamental. A mãe trabalhava fora para sustentar a casa, além dos 10 filhos — um deles preso há oito anos por homicídio. O pai da filha mais nova dela, que nasceu com a mãe encarcerada, está preso na Papuda, por roubo. Mônica perdeu a segunda filha há quase dois anos. A criança tinha 24 dias de vida e se engasgou enquanto mamava. “Chegamos a ir para o hospital, mas não teve jeito”, diz.

Antes de retornar à Colmeia, Mônica havia sido detida duas vezes por furto: em janeiro deste ano e em 2015. Dependente química, começou fumando maconha. Depois, avançou para a cocaína, até chegar ao crack. O refúgio na droga é atribuído ao “desgosto da vida” e ao companheiro. Enquanto compartilha o que viveu, ela enxuga os olhos com a fralda de pano da bebê. Diz fazer planos para o futuro. Depois de cumprir o tempo de pena, quer trabalhar, terminar os estudos e cuidar dos filhos por conta própria. “O crime não compensa. Nunca mais volto aqui. Quero um futuro bom para as minhas filhas, diferente de tudo o que fiz”, desabafa.


Decisão divina


Sandra*, 36, ainda não decidiu como se chamará a criança que carrega há quatro meses no ventre. Ela não sabe o sexo do bebê e não tem preferência por nenhum nome em específico. A descoberta da quarta gravidez aconteceu um dia antes de ser presa pela segunda vez por tráfico de drogas. Foi denunciada e detida por comercializar 6g de crack. “Meus filhos falaram para eu não cometer esse erro de novo, mas foi um momento de fraqueza”, relata Sandra. Ela diz ter informações de que o fornecedor da droga continua em liberdade.

Antes de ser presa, no fim de setembro, a interna trabalhava como copeira. Hoje, em prisão provisória, não tem ideia de quanto tempo passará na carceragem. Na primeira vez, em 2010, permaneceu na Colmeia por 7 anos. À época, a então moradora do Núcleo Bandeirante foi presa em flagrante com 10kg de merla. Estava separada do ex-companheiro e cuidava dos três filhos. Desempregada, viu naquela oportunidade (do tráfico) a única chance de conseguir sustentar a família. “O pai não dividia nada, não ajudava em casa, e eu estava sem emprego”, explica.

A detenta não teve uma infância fácil. Fugiu de casa aos 7 anos com um dos seis irmãos, depois de viver problemas com o padrasto e com a mãe, que disse preferir o marido aos filhos. Sandra deixou Tocantins e veio para o DF. Morou na Rodoviária do Plano Piloto por um tempo e, depois, mudou-se para a casa de um “pessoal bacana”, como ela própria descreve, que conheceu no terminal. Católica de família evangélica, ela acredita que o retorno para a penitenciária envolveu uma decisão divina. “Essa prisão foi para evitar que eu abortasse, pois era isso que eu ia fazer”, revela, com olhar compenetrado e demonstrando certo alívio.

Quando entrou na Colmeia pela primeira vez, há oito anos, Sandra não sabia ler ou escrever. Hoje, cursa o equivalente ao 2º ano do ensino médio. Enquanto isso, se prepara para dar à luz ao quarto filho no ano que vem, mas não há como ignorar as dificuldades da vida no cárcere. Será a primeira vez que ela terá um filho no complexo prisional. “O sistema é péssimo. Não há estrutura para grávidas. Falta tudo”, confessa, em voz baixa, na tentativa de impedir que uma das agentes penitenciárias perceba o desabafo.

Ela também lamenta ter de ficar no ambiente da cadeia com a criança nos primeiros seis meses. “Acharia melhor que o bebê fosse embora do que permanecesse. Por mim, mandaria ele para casa com 1 mês. Crianças têm de ficar na rua, não aqui”, opina. Questionada sobre quem cuidará do filho, ela acredita que o companheiro, com quem vivia em união estável, será um bom pai. Ainda assim, ela espera deixar a Colmeia para cuidar da criança prestes a nascer e da filha de 14 anos, em casa, com a sogra e o companheiro. “Aqui vai ser ruim, mas já conversaram comigo. Vou amamentá-lo pelos seis meses, mas espero conseguir sair com a tornozeleira.”


Sofrimento


Contextos histórico-familiares violentos se refletem em histórias diferentes e alguns relatos até se assemelham. Casos de hostilidade doméstica, abuso de drogas por parte do pai e agressão contra os filhos fizeram parte da infância de Manuela*, 21. “Até os 15, morei com a família. Mas meu pai batia muito na minha mãe, em mim e nos meus irmãos. Ele era viciado em cocaína e álcool. Então, eu fugi”, conta. Hoje, ela está grávida de 5 meses do segundo filho.

A jovem foi presa em 2016, após participar de um assalto a uma loja de roupas de Samambaia Norte. Ela e outro envolvido foram detidos. Manuela ficou na Colmeia por quatro meses, mas conseguiu um alvará para cumprir prisão domiciliar sem tornozeleira, a fim de cuidar do filho pequeno, que morava com a avó, em Anápolis (GO). A medida determinava que ela não deixasse a cidade goiana. Entretanto, Manuela voltou a Brasília para se casar.

Ela e o companheiro permaneceram juntos até março. Registros de violência e abuso de drogas eram constantes da parte dele. Em junho, a jovem foi presa no momento em que levava uma amiga de volta do regime semiaberto à Colmeia. “Havia um mandado de prisão aberto contra mim por causa da mudança de endereço. Identificaram o carro em que eu estava, pediram meus documentos e me prenderam novamente. Minha pena termina em abril de 2019”, comenta. Até lá, Manuela espera não ter de permanecer com a criança atrás das grades.

Tanto a prisão quanto a gravidez foram inesperadas e, para ela, encarar o dia a dia nessas duas condições é ainda pior. “Temos ajuda das agentes penitenciárias, só que ainda falta estrutura. Elas fazem de tudo, mas, um dia desses, por exemplo, nossa comida veio estragada; em outro, azeda. Isso é bem ruim quando se está grávida e longe da família”, desabafa. Manuela viu o filho maior pela última vez no Dia das Crianças. Na ocasião, pediu para que a mãe dela não o levasse mais para as visitas. “Ele saiu chorando muito. Quero revê-lo só quando eu sair. Ganhar neném aqui será um sofrimento dobrado. Mas tenho fé de que vou embora antes de abril”, conta, enquanto afasta as lágrimas dos olhos e cheia de esperança de que a decisão do STF seja cumprida logo.

Manuela confia nas chances de ter o filho fora da Colmeia. Enquanto isso, ela cursa o 9º ano do ensino fundamental na unidade e faz planos para quando deixar o complexo. “Sempre quis fazer direito. Vou mudar drasticamente meu meio social, trabalhar, ter uma vida digna. Não quero ver meu filho por trás das grades. Por isso, tenho de fazer por onde.”

*Nomes fictícios

Chance de adoção

Nas penitenciárias brasileiras, os bebês são afastados das mães seis meses depois de nascerem. Nos casos em que há um parente próximo, a criança pode ficar com a família original. Entretanto, se não houver quem tenha condições ou manifeste o desejo de cuidar da criança, a guarda é decidida no âmbito da Vara da Infância e da Juventude (VIJ) que, geralmente, encaminha o filho da detenta para um abrigo.
 

Quatro perguntas Renata Gil 



Renata Gil, vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)

Quais sãos os bônus e os ônus da prisão domiciliar para as detentas? 

A decisão é um direito consagrado que atende a todos os tratados internacionais que o Brasil assinou com a Declaração dos Direitos Humanos. A situação de bebês morando com as mães em prisões é uma realidade. Um censo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) demonstrou que há 249 bebês nessas condições no país, e o Ministério da Saúde concluiu ser absolutamente inconveniente essa realidade, pois essas crianças não podem viver acauteladas. O problema é que o Estado não faz a parte dele.

Quais os pontos analisados na hora da concessão desse benefício a mães presidiárias?

Cada caso deve ser analisado individualmente, porque muitas sequer exerceram a maternidade durante a vida e a criança é relegada aos cuidados de terceiros, como avós ou até vizinhos. A decisão não pode ser encarada como um benefício, mas um direito da criança e da mãe. É importante que a situação seja analisada e submetida ao crivo judicial. Se o sistema penitenciário estiver atualizado, em cada estado haverá dados suficientes para fazer essa análise.


Qual é a responsabilidade do Estado com a prisão domiciliar dessas mulheres?

O Estado não tem um sistema eficiente de controle para fiscalizar se a prisão está sendo cumprida adequadamente ou se a pessoa está dentro de casa sem infringir qualquer regra. Deveria haver um aparato de assistência para verificar se essas crianças estão inseridas em creches, além de tudo o que for necessário para que a prisão tenha o efeito benéfico que a decisão procurou definir. Ainda não há um setor específico que cuide delas e dos filhos.

Qual é a diferença de amamentar e cuidar de um filho de até seis meses dentro e fora do presídio?

Dentro do lar, a criança estabelece uma relação familiar, onde outros parentes podem se dedicar e ajudar nos cuidados. Há uma sociabilidade mais saudável do que dentro dos presídios, onde os filhos só têm contato com a mãe e outras presas. Portanto, a determinação do Supremo Tribunal Federal garante direitos constitucionais previstos. Todo mundo tem direito a uma vida saudável, à liberdade, ao acesso à escola e à saúde. Mas, dentro do presídio, todos esses elementos para o crescimento saudável de uma criança são minimizados, até porque temos um sistema carcerário em crise, com condições ruins e que não cumpre as responsabilidades com a pessoa encarcerada.
 

Habeas corpus coletivo

 
Na Penitenciária Feminina do Distrito Federal, a Colmeia, existem, atualmente, oito lactantes, sete gestantes — uma delas em trabalho externo — e 125 mães com filhos menores de 12 anos. Para serem beneficiadas com a prisão domiciliar com uso de tornozeleira, determinada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em fevereiro passado, é necessário apresentar um pedido de habeas corpus. Uma equipe psicossocial atestará ou não a veracidade da versão das internas. A situação das famílias também passa por análise para que a Justiça verifique se, antes de ser presa, a mãe de fato cuidava dos filhos. O processo é enviado à Vara de Execuções Penais (VEP) para decisão.

Vinte e cinco detentas da Colmeia foram beneficiadas recentemente com a prisão domiciliar com base na determinação da Corte Suprema. Cinco delas voltaram por descumprir as medidas acordadas. “Infelizmente, existem casos em que a detenta usa da questão do filho para voltar para a rua. Temos uma interna que, em um saidão especial, entregou a criança para uma pessoa de quem ela não lembra. Quando voltou, ainda tentamos procurar pelo bebê, mas não o encontramos mais”, conta a delegada Deuselita Pereira Martins, diretora da Penitenciária Feminina.

Segundo ela, a maioria das presas é dependente química e não se recupera fora do presídio. “Existe uma ideia romantizada de que a mãe cuida e zela pelo filho, mas esse não é o caso da maioria das que estão aqui, infelizmente. Há uma problemática maior, a do vício, que é mais forte que o amor materno”, observa.


Composição


Na Colmeia, internas grávidas recebem consultas de pré-natal nos hospitais regionais do Gama e de Santa Maria, ambos credenciados para os partos das internas. Quando a criança nasce, mãe e bebê vão para a Ala das Lactantes. O sistema oferece uma equipe de atendimento básico que aplica vacinas e consulta crianças e mães. “Até os quatro meses, os bebês são amamentados. A partir daí, preparamos a criança para sair com uma alimentação diferenciada, determinada por pediatras e nutricionistas, e intensificamos a visita da família substituta”, explica Deuselita.

Apesar de as presas terem direito à visita íntima, a diretora conta que, em nove anos de atuação, apenas uma delas engravidou dentro do sistema. A delegada atribui o baixo índice de gestação a campanhas de prevenção dentro da Colmeia, com conscientização sobre o uso de métodos contraceptivos. “Todas as outras vieram grávidas, sendo que muitas delas não têm ideia do período em que estão na gravidez”, reforça a diretora.

À espera

Na sessão de 20 de fevereiro, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu conceder habeas corpus coletivo para determinar que a prisão preventiva de gestantes, lactantes, mães de crianças de até 12 anos e pessoas com deficiência presas em todo o país seja substituída por prisão domiciliar. O caso vale apenas para mulheres que estejam em prisão provisória e aguardam decisão judicial.
 

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação