Cidades

Conheça a história de Glorinha, mãe e avó de 2,5 mil crianças

Esse é o número aproximado de crianças que a idosa resgatou e acolheu desde 1984, quando fundou oficialmente o Lar da Criança Padre Cícero em Taguatinga

Mariana Machado
postado em 27/11/2018 06:00
história de Glorinha, que resgatou crianças e deu um lar para elas em Taguatinga
Quem vê Maria da Glória Nascimento, aos 73 anos, com a fala suave, sorriso aberto e cabelos brancos pode até associá-la à imagem de uma vovó. Só não imagina que os filhos e netos já são de mais de 2.500. Esse é o número aproximado de crianças que Glorinha, como prefere ser chamada, resgatou e acolheu desde 1984, quando fundou oficialmente o Lar da Criança Padre Cícero em Taguatinga, mas ela mesma afirma que perdeu as contas há algum tempo.

Antes mesmo de fundar a instituição, levava para casa as crianças que via em situação de rua ou extrema pobreza. Em alguns casos, pais que não queriam ou não tinham condições de criar os filhos, deixavam os pequenos com Glorinha. ;Nos anos 1970, aqui não tinha creche, mas lutei para que isso acontecesse. Nem sabia ainda o que era Vara da Infância, mas queria ajudar;, relembra Glorinha.

Quando tinha acolhido 50 jovens, foi informada por duas assistentes sociais de que precisava regularizar as ações. Assim, nasceu o Lar. ;No começo, nem entendia o que estava fazendo direito, só sabia que precisava ajudar uma criança no chão, com fome e doente. É muito fácil dizer que ama quando (a criança) está cheirosinha. Agora, levar para casa doente e tratar?;, comenta.

Hoje, o Lar de Crianças funciona como abrigo para 20 bebês de até 2 anos. Além disso, Glorinha criou três creches, para que mães tenham onde deixar os filhos enquanto trabalham. O objetivo é, com isso, evitar o abandono. ;Muitos bebês chegam aqui desnutridos, a maioria nasceu prematura, mas nós damos cuidado, carinho e a assistência médica necessária para a recuperação. Depois tentamos encontrar alguém da família que possa cuidar ou eles entram no sistema para adoção;, explica.

Nesses anos de trabalho social, ela viu de tudo acontecer: casos de violência sexual, acidentes domésticos e até venda de bebês por aplicativos de internet. ;Tinha pai que jogava o menino por cima do muro para eu cuidar, outros faziam tráfico de crianças trocando o bebê por um botijão de gás;, relatou. Mesmo com as boas ações, Glorinha foi vítima de preconceito várias vezes. ;O filho do rico é criança, mas o do pobre é chamado de menor ou trombadinha. Chegaram a dizer que as pessoas ficam fazendo filho porque eu pego para criar;.

Nada disso abalou a determinação da mulher que hoje coleciona histórias dos tantos filhos e netos que amparou. No aniversário dela deste ano, mais de 100 pessoas foram à casa em Taguatinga para lhe dar os parabéns. ;Cada criança que passa por aqui tem uma história forte, com muitos dramas. Eu só faço o que posso;.

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Vocação


A vontade de cuidar da infância de tantos pequenos é uma consequência das turbulências que ela mesma viveu ao longo da vida. Quando tinha apenas 3 anos, Glorinha foi abandonada pelo pai na porta de um mosteiro franciscano no agreste cearense, na cidade de Juazeiro do Norte, terra de Padre Cícero. Daí veio o nome para o abrigo que fundaria anos mais tarde.

Em um primeiro momento, foi cuidada por um frei, mas, como o espaço era apenas para homens, um tropeiro que morava ao lado decidiu adotar a menina. O novo pai adotivo também havia sido abandonado quando garoto. O relacionamento dos dois era de muito carinho, mas, pelo trabalho, ele precisava viajar muito e deixava Glorinha com a esposa que, no entanto, não gostava dela e permitiu que fosse, por anos, abusada sexualmente por outras pessoas.

Mesmo assim, Glorinha se tornou uma criança preocupada com os outros. Quando tinha apenas 8 anos, ela encontrou, sob uma árvore, um bebê abandonado. Na mesma hora, o levou para casa e implorou ao pai que a deixasse cuidar do neném. Relutante, ele concordou até que a família biológica fosse encontrada, o que só aconteceu anos mais tarde.

Os anos se passaram, Glorinha casou e teve três filhos. Ainda assim, continuava o trabalho voluntário, distribuindo comida e roupas para famílias carentes que encontrava. Em busca de uma vida melhor, o grupo mudou-se para Brasília no começo dos anos 1970, em busca de emprego. Aqui, a vocação social cresceu ainda mais.

Inspiração


Encantada com a história de Glorinha, a psicóloga Adriana Kortlandt escreveu uma biografia que batizou de A casa da vida. As duas se conheceram em 2001, mas, apenas em 2015, Adriana foi autorizada a escrever. ;Uma amiga me ligou e disse que eu precisava prestar atendimento a uma mulher em crise. Logo que cheguei, fiquei impactada com a casa cheia de crianças;, relembra.

Glorinha estava enfrentando uma depressão logo após a perda de um dos filhos adotivos. Aos 20 anos de idade, o jovem foi assassinado a tiros por dois homens em uma moto. O crime aconteceu a poucos passos de casa, em uma rua sem iluminação e, até hoje, a mãe não recebeu uma conclusão para o caso. A suspeita policial é de que ele foi morto por engano em um acerto de contas, por se parecer fisicamente com o alvo real.

Semanas depois, a psicóloga fez uma nova visita, momento em que decidiu que precisava escrever a história de vida daquela mulher. ;Logo que eu cheguei, vi Glorinha sentada em uma poltrona segurando um bebezinho minúsculo. Ela tinha ido a um lixão levar cestas básicas e encontrou aquela coisinha miúda no meio do lixo;, relembra. Na mesma hora, levou o bebê para casa. Enquanto aquecia aquele corpinho frágil, as filhas acionavam hospitais e serviços sociais para ajudar.

;Glorinha é uma sobrevivente da própria infância. Ela nem queria que eu contasse a história dela porque tem muita tristeza, achava que ninguém leria; comenta Adriana. Mas os resultados provaram o contrário. A primeira edição, publicada em 2017, teve numa tiragem de 2 mil exemplares e está quase esgotada. O livro rendeu a Adriana o prêmio International Latino Book Award de melhor livro não ficção em língua portuguesa. Glorinha, é indicada a receber o prêmio Donovan Kigar 2018 por realizações de vida.


Ajude o abrigo

Tanto o lar quanto as creches recebem um repasse mensal da Secretaria de Educação e da Secretaria de Estado do Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos (Sedestmidh), mas não é suficiente para arcar com os custos. O berçário precisa de doações, especialmente de leite infantil (fórmula para lactentes) e fraldas. Quem quiser doar pode entrar em contato pelo telefone: 3354-6187.


foto de capa do livro A Casa da Vida
Serviço
Hoje, às 18h30, autora e personagem de A Casa da Vida participam de um bate-papo e sessão de autógrafos com leitores na Livraria, Café e Bistrô Sebinho, na comercial da 406 Norte.

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