Jornal Correio Braziliense

Cidades

Crônica da Cidade: 'Vinte e quatro'

"Como meu nome começa com a letra h, na chamada da escola eu sempre ficava ali pelo meio da lista de alunos, naquela zona perigosa perto do número 24"

Todo primeiro dia de aula era um suplício. Eu ia meio calado no banco de trás do Passat verde metálico de minha mãe, fingia um sorriso ao me despedir e caminhava meio aterrorizado até a sala de aula. Diante da porta, suando frio, olhava a lista de alunos até chegar ao meu nome e ; já quase derretendo de medo ; conferia qual seria meu número de chamada naquele ano. ;Vinte e quatro, não. Vinte e quatro, não. Por favor, meu Deus, vinte e quatro, não;, orava mentalmente.

Como meu nome começa com a letra h, eu sempre ficava ali pelo meio da lista de alunos, organizados em ordem alfabética. Enquanto as Anas, as Beatrizes e os Bernardos ficavam invariavelmente no começo, e os Robertos, as Tatianas e os Vinícius iam lá para o fim, o Humberto me posicionava naquela zona perigosa perto do 24, o número que, se calhava de ser o seu, lhe rendia um ano inteiro de tormento.

;Maldito Carinhoso;, eu praguejava, amaldiçoando a novela com Regina Duarte e Cláudio Marzo que estreara no ano em que nasci e havia tornado popular o meu nome. ;Meu filho vai se chamar Aarão;, prometia em seguida, determinado a não passar adiante aquela tortura.

Hoje, quando me lembro disso, duas coisas parecem muito surreais. A primeira é que, mesmo sendo colecionador de infortúnios infantis, esse temor específico nunca se materializou. Fui os números 22, 23, 25, mas nunca o 24. A outra é que esse medo começou muito cedo, quando eu sequer entendia direito o significado daquele xingamento dirigido ao longo de um ano inteiro aos garotos que ficavam com o indesejado número.

Palavrão

Foi, muito provavelmente, meu primeiro contato com outro palavrão, que eu levaria ainda mais tempo para entender o significado: homofobia. Sim, é esse o nome do fenômeno que faz com que crianças, que ainda nem amadureceram sexualmente, façam chacota, rejeitem, temam ou sintam raiva de qualquer coisa associada à homossexualidade.

É esse o nome do fenômeno que faz com que deputados distritais recusem um gabinete amplo e com bela vista para o Eixo Monumental só porque é o de número 24, como mostrou minha colega Ana Viriato em matéria publicada neste Correio na última quinta-feira.

A sala acabou ocupada, num gesto político e de afirmação, por Fábio Félix, primeiro representante da comunidade LGBT eleito para a Câmara Legislativa do Distrito Federal. A se julgar pela reação dos nossos representantes diante do gabinete 24 ; tão madura quanto a de garotos do 2; ano do ensino fundamental ;, Fábio terá muito trabalho. Desejo boa sorte e sucesso a ele.