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Aos 88 anos, síndica do Sudoeste é a mais longeva do país

Sábado próximo, Antônia Leal dos Reis completa 88 anos de vida. É hoje, em atividade, a síndica mais longeva do Brasil e do DF e tornou-se unanimidade no Sudoeste

Marcelo Abreu, Especial para o Correio
postado em 21/02/2019 06:00
Antônia plantou dois ciprestes italianos há mais de 15 anos, quando tinham menos de 50cm. Hoje, passam dos 20m e são conhecidos como as Torres Gêmeas do SudoesteNo dia em que preparava o enxoval para o casamento, a mãe, a dona de casa espanhola Dolores Fontela Leal disse para a noiva, a segunda filha, então com 20 anos: ;Você tem que colocar os aventais para cozinhar para seu marido. Mulher precisa cozinhar para o marido;. Ela olhou para a mãe e disse: ;Tudo, menos avental;. No enxoval da noiva, os aventais não couberam. O pai, o serrador português Manoel Leal, longe da mulher, disse à filha que ia se casar: ;Você tem que fazer o que gosta;. Foi o que Antônia Leal dos Reis precisava ouvir. Ela, desde aquele dia, só fez o que realmente quis fazer.

E por fazer só aquilo que gosta e quer, sábado próximo, 23, ela completará 88 anos. Parabéns! É mais que parabéns! É um tanto de vida que não cabe nem nela mesma. Hoje, com qualidade de vida, muita gente chega e passa brincando dos 80 anos. Mas essa mulher tem algo especial, ela é a síndica mais longeva do DF e do país. Detalhe: ainda trabalhando. A informação é da Associação Brasileira dos Síndicos e Síndicos Profissionais (Abrassp). Há 27 anos, ininterruptos, é ela quem dá as ordens e as cartas num prédio da Quadra 103 do Sudoeste. Um bloco com 117 unidades, que reúne comércio e residência.

Na terça-feira passada, na entrada do prédio, ela foi agraciada com o prêmio Master Síndico, o mais importante da entidade, que congrega mais de 25 mil síndicos de todo o país. O diploma lhe foi entregue pelo diretor da Abrassp, Paulo Roberto Melo. ;Apenas 20 pessoas já receberam esse prêmio;, diz ele.

E ela virou, mesmo sendo síndica, pasmem, uma unanimidade na quadra. É adorada por todos. Não há exagero no uso da palavra. Dos porteiros, passando pelos moradores aos empresários da região de classe média alta. O porteiro e encarregado do prédio, Carlos Silva, 42 anos, o mais antigo no bloco, não lhe poupa elogios: ;Ela é rigorosa. Checa tudo, vê tudo, cobra cada detalhe. Mas o que mais me impressiona na dona Antônia é a honestidade e a simplicidade. Ela virou meio mãe de todo mundo aqui;.

Além do tempo

Mas antes de ela chegar a Brasília e virar síndica, há um monte de história lá atrás. Voltemos, então, ao interior de São Paulo. Em Garça, região de Marília, houve o casamento de Antônia e Milton Maganha. Com ele, viveu por 34 anos. Vieram os três filhos. Era uma mulher cercada por quatro homens. Um dia, o marido quis se mudar de São Paulo. Comprou uma fazenda em Maringá. Ia plantar e vender. A família inteira se mudou para o Paraná. E foi ali que Antônia fez tudo: menos usar avental para cozinhar. ;Até sei fazer uma coisa ou outra, mas sou péssima na cozinha. O que gosto é da parte de confeitaria;, diz.

Aprendeu a dirigir sozinha. Nos anos 1950/1960, guiava um Jipe 1954 pelas fazendas das redondezas. Levava e buscava os filhos na escola. Não só os filhos, mas as crianças das outras fazendas. Ia com a cara e a coragem, às vezes, inventando estradas que nem existiam. E, para não depender apenas do dinheiro do marido, aprendeu também a costurar. Passou a dar aula de costura para as mulheres da região. ;Era uma boa modista. Por isso gosto de moda até hoje;, conta.

Ali em Maringá, a vida seguia seu rumo. Um dia, Milton viu que os negócios não estavam indo bem. E, mais uma vez, decidiu recomeçar. Voltou para São Paulo. Os filhos, já maiores, começaram a seguir também os próprios rumos. Mudaram-se para Brasília. Anos depois, em 1977, Miguel e Antônia chegaram a Brasília. Antônia contava 46 anos. Milton, 50. Vida nova na terra de JK. Em todos os sentidos. Ela, intuitiva, queria mais. ;Os meus três filhos estavam criados. Eu já havia cumprido minha missão de mãe. Meu casamento estava diferente. Eu queria viver.;

A grande paixão

Antônia foi viver. E viver é, definitivamente, o que lhe dá mais prazer. ;Eu amo a vida. Amo acordar e me sentir viva;, me disse ela, várias vezes, durante os nossos encontros. Poucos anos depois, divorciada, mas amiga de Miguel, o pai dos filhos, encontrou um novo amor. Antônia já havia passado dos 50. ;Ele era militar da Aeronáutica, quatro anos mais novo do que eu;, conta. Foi paixão arrebatadora.

Adiodato José dos Reis foi servir na Embaixada do Brasil no Uruguai. Montevidéu seria o novo lar. Lá, Antônia teve papel de destaque. Deu vida e levou alegria ao lugar. ;Eu organizei todas as festas nos dois anos em que vivemos lá. Coloquei o Brasil em destaque. Até festa junina eu fiz;, diz, mostrando as muitas fotografias de papel e os olhares apaixonados entre ela e Adiodato.

Antônia lembra as viagens para Buenos Aires. Os tangos que dançou com seu o amor da maturidade. E o espanhol que fala bem, aprendido ainda com a mãe espanhola. Os dois anos no Uruguai acabaram. Adiodato foi para a reforma e voltou para o Brasil. Resolveu morar em Natal. Queria estar perto do mar. Ali, viveram os últimos anos de amor. Ele morreu, repentinamente, de um edema pulmonar. ;Foram seis anos de muita felicidade, talvez os mais intensos da minha vida;, relembra, com olhos perdidos de saudade na sala do seu apartamento.

Viúva, antes dos 60 anos, ela deixou Natal e voltou para Brasília. Aqui estavam os três filhos, os netos e o ex-marido, que morreu há pouco tempo. Sempre independente, decidiu também que teria o canto dela, sozinha. O prédio onde mora e no qual virou síndica estava acabando de construir. Ela não hesitou. Comprou ali seu apartamento. Foi a primeira moradora. E, há 27 anos, é a pessoa mais atuante do lugar onde vive e do Sudoeste, onde chegou quando o bairro era ainda um monte de barro vermelho e poucos acreditavam que se tornaria uma das regiões mais atraentes e disputadas do DF.

Uma luta por todos

E a luta dela não é apenas para o seu quadradinho ou pela quadra onde mora. Juntou-se à campanha pelo Batalhão da Polícia Militar do bairro. Conseguiu. Está atenta a tudo. Não deixou que os flanelinhas dominassem, sem critério, o espaço. E, por isso, sem imaginar, tornou-se unanimidade no espaço onde vive.

;O que mais me impressiona nela é a vitalidade e a alegria. Ela me dá conselhos. Eu aprendo todo dia com dona Antônia;, diz a decoradora Mônica Blanco, 40, que morou no prédio e, mesmo fora, sempre passa lá para uma boa conversa. E entrega, às gargalhadas: ;Ela é que me leva para o bar, para a gandaia;.

Elvi de Sousa, 33, é gerente do Café Tróia, que reúne café, restaurante e bar, lugar que Antônia sempre frequenta com as amigas, para ouvir música e tomar a sua caipiroska de kiwi, descoberta recente e predileta. A gerente virou fã: ;Ela tem um jeito de lidar com as pessoas especial. Trata todo mundo bem, pode ser quem for. No dia em que não vem, a gente estranha;.

Wiliam Matos, garçom da Padaria Pães e Vinhos, outro lugar que ela frequenta diariamente, admira-se com a vivacidade da mulher de 88 anos: ;Ela tem uma cabeça incrível. É um exemplo;. A fiel diarista, Rosa Pinheiro da Silva, de 40 anos e há 11 aprendendo com as lições de vida de Antônia, emociona-se: ;Ela, de patroa, virou amiga. Quando estou com problema é com ela que desabafo;.

A empresária Vilma Peixoto, 59, dona da Barbearia Peixoto, que está na quadra há 22 anos e virou subsíndica há quatro, hoje tornou-se amiga de Antônia. ;Sou aprendiz dela. O que mais me chama a atenção é que ela percebeu que o mundo evoluiu e ela teve flexibilidade para evoluir com o mundo;. E rasga elogios: ;Gosto da modernidade dela, da forma como se veste, das roupas coloridas, do astral. Ela não fala de dores, de tristeza;. Antônia é moderna sem rede social. Ela prefere a vida real: ;Tenho um celular, mas quase não atendo. O telefone fixo de casa resolve. Eu gosto de ver as pessoas nos olhos, lidar com elas;.

Amor de família

Se Antônia é unanimidade no lugar onde vive, não seria diferente entre a família ; os três filhos, seis netos e quatro bisnetos. O filho caçula, Carlos Eduardo Maganha, 60, corretor da Bolsa Nacional de Mercadoria e morador do Park Way, fala com voz embargada ao descrever a mãe: ;A minha maior admiração é ela ser justa. Sempre teve uma noção de justiça muito forte. E admiro a independência e a coragem como enfrentou a vida, nunca se dobrou por nada. O tempo não foi inimigo;. A cada domingo, ela vai para casa de um filho. É o almoço sagrado. ;Mas ela sempre volta para a casa dela, não aceita dormir na casa de nenhum de nós. Ela é muito independente;, entrega Carlos Eduardo.

A nora Adelaide Maganha, 59, corretora de grãos e mercadoria, reflete: ;Ela luta pelo bem-estar de todo mundo. É uma mãe pra mim;. A neta, a médica Ana Carolina Zuliane Maganha, 38, é pura admiração: ;Ela não se tornou a vozinha do crochê. Venceu dificuldades, os desafios e virou uma mulher forte, que acredita na vida. Eu aprendo com ela;.

A neta conta uma passagem recente e fantástica: ;Uma noite, passava das 9h, estava eu com meus dois filhos e marido no carro e fui à casa dela para levar um remédio. Aí, ao chegar à portaria, o porteiro logo me disse que ela estava no café da quadra com as amigas, toda animada e ouvindo música. Ela me olhou e disse: ;Carol, minha querida, senta aqui, toma uma taça de vinho;. Ela é assim. Minha avó é pura vida;.

Foram três dias conversando com várias pessoas para traçar um perfil de Antônia Leal dos Reis. Foram três dias indo à casa de Antônia para ver a vida dela, sentir, ver fotos em papel e escutar os discos de Nelson Gonçalves na sua vitrola. Foram três dias para entrar no mundo de Antônia. É muita pretensão querer definir uma mulher de 88 anos em três dias.

Antônia é o que de mais perto a gente conhece ou tem ideia de ser humano. Cada vez em extinção. Um ser humano que empolga, apaixona e nos convida para viver a mesma história. Por alguns momentos, era como se o repórter estivesse de carona, no Jipe 1954, rasgando as estradas que ela dirigia no Paraná. Antônia é extraordinária. É o que se pode dizer sobre ela. E isso é definitivamente tudo.

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