Cidades

Projetos de literatura empoderam mulheres e grupos LGBT+ no DF

Projetos com foco em literatura escrita por autoras mulheres e LGBT%2b colocam em evidência a atuação desses grupos e buscam a igualdade

Aline Brito*
postado em 17/03/2019 08:00
Por meio do Escrevivências, a editora Padê, liderada por Tatiana (E), publicou obras escritas por Nina e Kati
A busca por representatividade permeia os diferentes setores da sociedade. Em Brasília, minorias encontram ressonância em projetos voltados ao universo literário. Iniciativas espalhadas pela cidade buscam dar espaço a mulheres, negros e a pessoas LGBT%2b.
Fundada em 2015 pela brasiliense Tatiana Nascimento, em parceria com a paulista Bárbara Esmenia, a Padê editorial é um desses exemplos, a editora publica livros artesanais, de autoras negras, periféricas, lésbicas, travestis, pessoas trans e bissexuais, em tiragem pequena, de 300 a 500 exemplares. ;A Padê começou a publicar autoras homossexuais negras, para fazer livros e publicar essas vozes em livros que trazem outras realidades. É pensar sobre a hegemonização e a padronização;, afirma Tatiana.

A ideia surgiu depois que a brasiliense ganhou um livro artesanal. Conversando com Bárbara, as duas decidiram fundar uma editora para publicar os textos escritos por elas e pelas minorias que não têm espaço no mercado editorial convencional. ;Eu ganhei um livro com capa de papelão e achei incrível. Então, decidimos abrir um espaço para publicarmos nossos textos e os textos de pessoas como nós, que, muitas vezes, não seriam aceitas pelas grandes editoras;, conta Tatiana.

[SAIBAMAIS]Os livros impressos pela Padê são cartoneros, ou seja, obras com capa de papelão, costuradas à mão. Assim, o baixo custo da produção dos livros possibilita a venda dos mesmos por um preço mais barato e gera renda para as escritoras. ;O aspecto mais interessante da editora é o modo como ela deixa factível e acessível a publicação de livros, mostrando a todos que é possível ter uma obra publicada a baixo custo;, comenta a brasiliense.

Investimento


Dos 42 títulos da Padê editorial, a maior parte está publicada pelo projeto intitulado Cole-sã Escrevivências. Essa coleção contou com o apoio do fundo ELAS de Desenvolvimento Social ; fundo brasileiro de investimento social voltado exclusivamente para a promoção do protagonismo das mulheres ;, que aprovou a proposta apresentada de publicar, inicialmente, 44 títulos de autoras lésbicas, bissexuais, mulheres trans e travestis em livros de pequena tiragem, com cotas raciais de, ao menos, 65%.

Nina Ferreira, 29 anos, é uma das poetas que teve uma obra publicada. A brasiliense foi escolhida por meio do processo seletivo lançado por edital de convocação e pode, pela primeira vez, ver seus textos impressos artesanalmente. ;Esse foi o meu primeiro livro, a primeira vez que publiquei minhas poesias e fiquei feliz por ter sido por um projeto tão importante e representativo;, elogia.

A jovem começou a escrever ainda na adolescência. A paixão pela escrita e pela música veio de muito cedo, quando era criança. ;Na infância, eu gostava de ler encarte de CD e, na adolescência, comecei a compor músicas. A partir disso, surgiu minha relação com a poesia;, conta a escritora. Depois de adulta, Nina começou a participar de slams de poesia ; nome dado aos campeonatos de poesia ; e a apresentar seus textos de forma falada.

O livro Pérola Marrom, impresso no formato artesanal exigido pela Padê, com capa de papelão, iniciou com a tiragem de 44 títulos, cada um vendido a R$ 30. ;Por mais que os poemas estejam disponíveis na internet, ter um livro físico é uma relação diferente com a literatura. O livro é algo que te acompanha e que está em lugares inusitados;, opina a escritora.

A poeta Kati Souto, 21, publicou Noite.escura pelo projeto. ;Tive a oportunidade de fazer lançamento do meu livro em São Paulo, Salvador e na Universidade de Brasília. Com isso, a realidade que escrevo alcançou diferentes espaços e isso é muito gratificante;, comemora.

O hábito de escrever acompanhou Kati ao longo da vida e influenciou na escolha do curso superior. ;Escolhi cursar letras justamente por eu gostar de escrever e ter uma afinidade com as palavras;, conta. A obra publicada traz poesias sobre sexualidade, negritude, amor, lesbianidade e sobre vivências pessoais da escritora.

Agora, ela almeja lançar outros títulos. ;A melhor parte da impressão artesanal é que a escritora consegue se envolver com a feitura dos livros e colocar suas preferências, a sua cara na confecção;, afirma. Kati acredita que o projeto Escrevivências é uma forma de dar visibilidade às minorias. ;De alguma forma as minorias são invisibilizadas e, com o projeto, elas têm um espaço para expressar o que sentem, falar sobre a realidade que vivem;, finaliza Kati.

O projeto Escrevivências alcançou cenário internacional. Em julho, Tatiana Nascimento, representante da Padê e provedora do Escrevivências, participará de duas feiras internacionais de publicações, na Áustria e na Suíça. ;Será um momento muito importante para os escritores, para a editora, para que as realidades ali transcritas alcancem novos continentes;, conclui.

Representatividade


O Distrito Federal também conta com um grupo de leitura voltado às obras de escritoras femininas, nacionais e internacionais. Inspirado pela hashtag #readwomen2014, lançada pela escritora Joanna Walsh, o Leia Mulheres teve início no Brasil em 2015, em São Paulo. O principal objetivo do clube de leitura é discutir a representatividade feminina na literatura e incentivar as mulheres escritoras.

Em Brasília, o clube começou em setembro do mesmo ano, mediado pelas jornalistas Mariana de Ávila e Patrícia Rodrigues, com o livro Cinderela Chinesa, da escritora Adeline Yen Mah. O grupo conta atualmente com a participação de, em média, 30 pessoas por reunião. Os encontros são mensais, sempre na segunda quinta-feira de cada mês. Os livros são escolhidos democraticamente, por meio de votação em cada encontro.

Apesar de o clube contar hoje com a presença, exclusivamente, de mulheres, o intuito é abranger também os homens. ;É importante lembrar que o clube não é voltado só a mulheres; homens também são muito bem-vindos aos encontros;, lembra Maria Clara Oliveira, jornalista e mediadora do Leia Mulheres em Brasília. Além de ler obras de autoras mulheres, o grupo discute o conteúdo do livro e experiências cotidianas das participantes. ;Aqui em Brasília, também tentamos variar as nacionalidades de cada autora que é lida, assim como a temática dos livros ; até para que as discussões fiquem mais ricas;, explica.

A assessora de imprensa Adriana Mendes, 43, participa do Leia Mulheres há dois meses. ;Descobri escritoras estrangeiras contemporâneas, escritoras de clássicos que ficaram em segundo plano devido à história contada pela perspectiva dos homens e jovens escritoras brasileiras.;

* Estagiária sob supervisão de Mariana Niederauer

Diversidade

O DF tem pelo menos mais quatro projetos que se dedicam à publicação de escritoras negras, LGBT , pessoas periféricas e indígenas. A Ava Editorial se dedica à publicação de livros escritos por mulheres negras; a Aua editora prioriza obras de negras e indígenas; a editora Abadia Catadora publica títulos de pessoas periféricas; e a Maria Cobogó reproduz somente escritoras mulheres. ;Essas editoras alternativas estão sinalizando que o mercado editorial é fechado, heteronormativo e cria expectativas sobre o tipo de texto que temos de escrever. Então elas surgem como alternativa a esse padrão imposto;, avalia Tatiana Nascimento.

; Para saber mais

Perfil padronizado

Pesquisa comandada pela professora Regina Dalcastagn;, do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília (UnB), traçou o perfil de personagens da literatura brasileira. Homem branco, heterossexual, intelectualizado, sem deficiências físicas ou doenças crônicas, membro da classe média e morador de grande centro urbano é o personagem mais comum da literatura contemporânea e do romance brasileiro. Foram estudadas, ao todo, 1.754 personagens de 389 romances, escritos por 242 autores diferentes. De acordo com Regina, o perfil dos autores não é diferente do dos personagens: em sua maioria, homens, brancos, moradores do Rio de Janeiro e São Paulo e com profissões já ligadas ao domínio do discurso, como jornalista e professor universitário.

; Anote


Sarau

; O sarau de lançamento de novos títulos da Cole-sã Escrevivências ocorre em 30 de março, às 20h, no Instituto LGBT, localizado no Setor Comercial Sul, Quadra 4, Bloco A, Lote 170 ; Ed. Anápolis, Salas
301 e 302.

Livros

; As obras da Padê custam R$ 30, cada, e podem ser compradas por meio do site www.pade.lgbt. A livraria Africanidades, em São Paulo, a Cutuca Africanidades, em Salvador, e a Jardim, em Goiânia, também vendem exemplares.

Minorias representadas

A Padê editorial publica também outros escritores resistentes às normas e padrões sociais de escolaridade, raça, sexo, gênero e territórios. O intuito, de modo geral, é celebrar e procurar escritas que combatam opressões como o racismo, classismo, gordofobia, capitalismo, entre outros.


Pedro Ivo, 36, por exemplo, é autor de Afroqueer, existência: dor, luta, amor, que conta as vivências e experiências cotidianas de negros e negras LGBT . ;Consegui traduzir essas vivências em poesia;, afirma. A escolha das cores, da capa e da letra da publicação coube ao escritor. ;A estética do livro tem toda uma significação e representatividade que transmite a essência da obra.;
Autodeclarado negro e homessexual, ele é um dos idealizadores do Escrevivências. ;Precisamos ter espaço para falar da nossa realidade e sermos ouvidos. Levar minha obra para outros estados, como São Paulo e Salvador, e ver que as pessoas mostram empatia com a minha realidade é extremamente gratificante;, conclui o poeta.

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