Cidades

A via crucis de crianças e idosos nas filas de hospitais do DF

Na semana passada, o Correio percorreu cinco unidades de saúde do DF para apurar como crianças e idosos são tratados pela rede pública

Augusto Fernandes, Darcianne Diogo*
postado em 07/04/2019 07:00

O choro ininterrupto de Enzo Gabriel dos Reis, 1 ano, demonstrava bem a aflição de quem estava há quase dois dias sofrendo com uma febre de 40;. Nos braços da mãe, o menino parecia pedir por atendimento imediato no Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib). Apesar das lágrimas, ele aguardou mais de quatro horas até ter o seu nome chamado. ;É desesperador você ver um filho nessa situação e não poder fazer nada. É inadmissível ter que esperar tanto tempo e perceber que ninguém se importa. Isso dói;, desabafa a estudante Liliane dos Reis, 18, mãe do garoto.

O sofrimento que a família passou é apenas um retrato da situação de muitas outras pessoas que dependem da saúde pública no Distrito Federal, sucateada nas últimas décadas. É um problema histórico que o governo do Distrito Federal tenta resolver. Recorrer ao serviço virou sinônimo de angústia para brasilienses de qualquer faixa etária, sobretudo àqueles que deveriam ser tratados com prioridade: crianças e idosos (leia O que diz a lei). ;A gente mal chega e é informado de que não tem previsão de quando vai ser chamado por algum médico. Mas, se realmente não existem esses profissionais para ajudar a nossa população, por que o hospital ainda está aberto?;, argumenta Liliane.

Na semana passada, o Correio percorreu cinco unidades de saúde do DF para apurar como crianças e idosos são tratados pela rede pública e presenciou cenas parecidas com as de Liliane e Enzo Gabriel: pacientes incomodados com a espera por atendimento e revoltados por não receberem o mínimo de atenção por parte dos agentes de saúde. ;A nossa realidade é precária. As populações infantil e idosa têm crescido muito, mas a rede pública de saúde não conta com políticas estruturadas para receber esses grupos. Além disso, falta investimento ao Sistema Único de Saúde (SUS). Apenas reformar as unidades não basta;, alerta o mestre em ciência e tecnologia em saúde Danylo Vilaça.

A consequência disso é uma população aborrecida e decepcionada. De acordo com levantamento feito pela Companhia de Planejamento do DF (Codeplan), em outubro do ano passado, quase 61% dos brasilienses reprovam a qualidade do sistema de saúde pública do DF. A estatística, segundo Vilaça, é o principal indício de que a gestão do serviço precisa passar por mudanças, e é o que o GDF busca resolver, segundo ações do governador Ibaneis Rocha neste início de ano. ;Os gestores têm de entender o apelo da população, especialmente daqueles que são mais vulneráveis. As pessoas que administram a saúde devem trabalhar em cima desse indicativo para encontrar soluções que atendam às necessidades específicas da população. Assim, conseguiremos evitar a peregrinação dos pacientes;, analisa Vilaça.


Descaso

O aposentado Anflisio Ferreira, 70, sabe bem o que é ser jogado de hospital para hospital. Em 2017, ele foi atropelado por um motociclista embriagado e, desde então, reclama de fortes dores no joelho direito. Durante todo esse tempo, nenhum médico da rede pública conseguiu dar um fim ao seu sofrimento. ;Mesmo vendo a minha aflição, os profissionais que me atenderam à época disseram que eu não precisaria ser operado. Mas agora, passados dois anos, todos os médicos dizem que, se eu tivesse feito uma cirurgia, não sentiria mais nada. Esse tipo de coisa nos entristece;, lamenta.

Anflisio foi internado no Hospital Regional de Ceilândia (HRC) logo após o acidente. Como muitos pacientes que chegam à unidade de saúde, ele relata que ficou em uma maca nos corredores da emergência por cinco dias. Quando os médicos entenderam que ele estava apto para voltar a caminhar, o liberaram. Mas Anflisio alega que nunca melhorou de fato. Periodicamente, vai ao Hospital Regional de Taguatinga (HRT), mancando, na esperança de que as dores desapareçam de vez.

;Se eu continuo vindo até aqui, é porque realmente a dor incomoda. Não sei o que mais preciso fazer para que os médicos entendam o quanto eu quero dar um fim a essa situação;, confessa. ;Mas toda vez é a mesma coisa: espero uma eternidade e, depois que sou consultado, volto para casa de mãos abanando. Nós, idosos, merecemos mais compaixão;, acrescenta Anflisio.

Para o coordenador do curso de especialização em administração hospitalar da Fundação Getulio Vargas (FGV), Walter Cintra, o desabafo do paciente não é um episódio isolado. Segundo ele, idosos, em geral, encontram muitas barreiras na saúde pública. ;Esse grupo apresenta necessidades distintas do restante da população, devido ao envelhecimento, e, justamente por isso, tende a procurar mais pela saúde pública. Contudo, por dificuldades de locomoção e até de socialização, eles se deparam com situações de resistência dos gestores do serviço;, explica.

Dores constantes

O caso da aposentada Maria do Carmo, 86, é outra prova do que ocorre no atendimento a idosos na rede pública. Há mais de um mês lidando com desconfortos na coluna e nos braços devido a uma artrose, ela não consegue nem pentear o cabelo sem sentir dores. ;Eu gosto tanto de me arrumar, mas agora nem consigo direito. Quando levanto os braços, a dor é enorme;, conta.

Como não gosta de se medicar sozinha, a idosa vai ao HRT sempre que o incômodo aumenta. No dia em que conversou com o Correio, havia chegado ao hospital às 8h. Quando o relógio marcava quase 13h, ela ainda esperava ser chamada por algum médico. ;Infelizmente, a gente se acostuma. Tanto é que eu sempre trago uma fruta quando venho aqui, porque sei o quanto demora. Quem chega de manhã só vai embora à tarde. Quem chega à tarde, só vai embora de madrugada. É muito triste, sabe? Parece que a nossa vida não vale nada;, responde.

Walter Cintra, da FGV, ressalta que priorizar o atendimento a idosos é uma questão de consciência. ;As pessoas mais velhas, principalmente as que vivem sem a companhia de ninguém, tendem a ter riscos maiores de morte. Afinal, elas não têm a quem recorrer quando se sentem mal;, observa o especialista, ao acrescentar que, embora existam programas de assistência ao idoso, ainda é preciso mais estratégias. ;Tem de haver uma iniciativa da administração pública em criar centros de vivência, além da mobilização de toda a sociedade.;

No caso de pacientes infantis, o coordenador acredita que a dificuldade em atendimentos esteja vinculado à falta de pediatras. ;A especialidade exige uma demanda maior, e o perfil do profissional precisa ser diferenciado. Afinal, é preciso ter um vínculo mais forte com o paciente, ser dedicado e estar extremamente preocupado com a saúde da criança. Mas, infelizmente, cada vez menos médicos têm interesse em seguir a carreira;, ressalta.

Secretaria aposta na prevenção


Por meio de nota oficial, a Secretaria de Saúde informa que as Unidades Básicas de Saúde (UBSs) são a porta de entrada para o atendimento de crianças e idosos na rede pública. Hoje, 171 delas estão funcionando e contam com programas especiais de promoção e prevenção à saúde para os dois públicos, como: atividades em grupos, exercícios físicos e rodas de encontro para prevenção e acompanhamento de doenças como diabetes e hipertensão, além de práticas integrativas.

;Nas UBSs, o programa Estratégia e Saúde da Família presta assistência direta ao paciente. O médico de família e a equipe formada por enfermeiros, técnicos de enfermagem, agentes comunitários de saúde e equipe de saúde bucal fazem o acompanhamento da criança, passando também pelo idoso, com a vantagem de conhecer o histórico de saúde de cada paciente;, detalha a secretaria.

De acordo com a Saúde, todos os pacientes que chegam a uma UBS são avaliados individualmente e, dependendo da gravidade, são direcionados a um hospital. ;Seguindo esse fluxo, a população contribui para desafogar as emergências, que possuem um atendimento voltado para os casos mais graves, com risco de morte. O redirecionamento do fluxo também diminui o tempo de espera por atendimento nos hospitais e nas unidades de pronto atendimento (UPAs);, garante a pasta.

A secretaria também responde que tem o cuidado de propiciar cursos de aprimoramento aos profissionais da saúde, para que crianças e idosos sejam cada vez mais bem auxiliados. ;Prezamos pela qualidade do atendimento prestado pelos servidores e nos preocupamos com a capacitação de cada um, oferecendo cursos e oficinas nas diversas áreas em que atuamos.;

Acolhimento

Na nota, a secretaria ainda explica que segue protocolos de atenção à saúde para os dois públicos. Toda criança acompanhada da família que procura atendimento nas UBSs sem agendamento prévio, por exemplo, deve ser acolhida e receber uma resposta pertinente à sua necessidade no tempo adequado. Além disso, idosos devem ser recebidos por qualquer servidor assim que entrarem na unidade e encaminhados para uma sala de acolhimento.

Na prática, entretanto, muitas vezes não é bem assim. ;Eu vi o sol raiar daqui de dentro deste hospital, e nenhuma alma viva apareceu para me ajudar. Só falavam que estava lotado e que iriam atender casos de emergência absoluta. Mas será que o choro da minha filha não é suficiente para que eles percebam que ela precisa de ajuda?;, pondera a dona de casa Laís Diniz, 19.

Na madrugada de quinta-feira, ela levou a filha Sophia Emanuelly, 2, ao Hospital Regional de Santa Maria (HRSM), devido a uma suspeita de infecção urinária. Era 1h30 quando as duas deram entrada na unidade de saúde e, mesmo crecebendo uma pulseira laranja após a triagem (entregue para pacientes em estado muito urgente, e com tempo de espera para atendimento estimado em 10 minutos), Sophia só foi consultada mais de 10 horas depois. Laís ficou desesperada. A explicação era a de que o hospital estava superlotado.

;Como pode um hospital tão grande assim ficar nessa situação? Eu não consigo acreditar que os médicos trabalharam sem parar por 10 horas cuidando das mesmas pessoas;, esbraveja, com lágrimas nos olhos. Laís não era a única. A também dona de casa Rosilene Dias, 39, tomou um chá de cadeira maior: aguardou das 20h de quarta-feira até quase meio-dia do dia seguinte para ver os filhos Gabriel, 7 meses, e Ana Gabrielli, 3 anos, serem atendidos. ;Vim do Gama até aqui, com eles gemendo de dor por causa de febre, e sou tratada dessa maneira. Parece inacreditável: estamos dentro de um hospital, e não somos atendidos;, queixa-se. ;A vida de uma criança é muito importante. Acredito que os gestores da saúde deveriam olhar com mais cuidado para elas.;

Quatro perguntas para Helena Shimizu, especialista em administração hospitalar e de sistemas de saúde e professora do departamento de enfermagem da UnB


Por que crianças e idosos ainda encontram dificuldades no serviço de saúde pública?
Principalmente por conta dos pediatras e geriatras disponíveis na rede pública. Se analisarmos o número de crianças e idosos que recorrem ao serviço, a quantidade desses profissionais é insuficiente. Isso explica o fato de as pessoas desses dois grupos esperarem tanto tempo para serem atendidas. É claro que existem os clínicos gerais, mas só eles não dão conta da demanda. Para melhorar o serviço e superar essa lacuna tão grande, é necessário investir na formação de pediatras e geriatras.

Muitos pacientes reclamam do modo como são tratados dentro das unidades públicas de saúde. O que pode ser feito para melhorar isso?
Tem de haver uma capacitação dos agentes de saúde, sobretudo no que diz respeito à relação com as populações mais vulneráveis. Mais do que quaisquer outros públicos, crianças e idosos têm de ter um tratamento diferenciado. Infelizmente, o que temos hoje é incipiente. A saúde pública precisa trabalhar em cima disso.

Quais os principais danos às crianças e aos idosos por conta desse mau atendimento?
Acompanhar os primeiros anos de vida de uma criança é fundamental para o futuro dela. De 0 a 5 anos de idade, principalmente, ela deve ser observada em diferentes aspectos. Contudo, se o cuidado é negligenciado, provavelmente essa criança se tornará um adulto com problemas. Já aos idosos, os efeitos podem ser ainda piores. O programa de atendimento às pessoas mais velhas no DF e no Brasil é precário e ainda falta um planejamento específico para esse público. A nossa sociedade está envelhecendo muito rapidamente. Se algo não for feito agora, em 15 anos, o sistema público de saúde entrará em colapso, pois a demanda de idosos será ainda maior.

É necessário implementar políticas especiais para crianças e idosos?
Com certeza. E não só no DF, mas em todo o Brasil. Tem que haver uma transformação, principalmente na prevenção e na promoção de saúde, pois as pessoas estão envelhecendo sem nenhuma qualidade de vida. A partir dessas medidas, o sistema público de saúde deixará de ter tantos gastos no trato aos pacientes.

Onde e quando procurar atendimento

; Saber em qual lugar da rede pública de saúde buscar assistência é fundamental para melhorar o funcionamento do serviço, diminuindo o tempo de espera e otimizando o fluxo do atendimento médico-hospitalar.

; O pronto-socorro não é o lugar certo para solicitação de exames, trocas de receitas, atestados de saúde e outros procedimentos que não sejam de urgência.

; Problemas de saúde mais comuns e exames de rotina devem ser feitos nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs) ou nas Estratégias de Saúde da Família (ESFs).

; Para os casos de urgências, como acidentes, fraturas e infartos, o paciente deve ser encaminhado para o pronto-socorro do hospital. ;É importante que a população faça o uso correto desses locais de atendimento. Assim, o tempo de espera por uma consulta é reduzido, e todos são atendidos com qualidade;, diz Helena Shimizu, especialista em administração hospitalar e de sistemas de saúde e professora do departamento de enfermagem da UnB.

O que diz a lei

; O Estatuto da Criança e do Adolescente, nos artigos 3; e 4;, e o Estatuto do Idoso, nos artigos 2; e 3;, estabelecem que a criança e o idoso gozem de todos os direitos fundamentais inerentes ao ser humano e que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida e à saúde. A garantia de prioridade compreende, por exemplo, a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, a precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública e o atendimento preferencial imediato e individualizado junto aos órgãos públicos e privados prestadores de serviços à população.

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