postado em 22/05/2019 04:08
Dor e impotência deram o tom ao velório da professora Debora Tereza Correa, 43 anos, a 13; vítima de feminicídio do Distrito Federal em 2019. Na tarde de ontem, centenas de amigos e familiares reuniram-se no Cemitério Campo da Esperança, na Asa Sul, para se despedir da mulher assassinada na sede da Coordenação Regional de Ensino do Plano Piloto e Cruzeiro, na 511 Norte. Durante a cerimônia, representantes do Sindicato dos Professores (Sinpro) ergueram faixas com os dizeres ;Parem de nos matar!” e ;Basta de feminicídio!”.
Ela foi morta por três tiros dados pelo ex-namorado, o policial civil Sergio Murilo dos Santos, 51. Em seguida, cometeu suicídio (leia Memória). ;Não é só mais um crime, é a história de vida de uma pessoa que é levada;, declarou o irmão da vítima, Samuel Péricles Caminha Corrêa, 52. Debora deixou pai, mãe e mais um irmão. Segundo ele, a irmã, de perfil reservado, dizia apenas estar em um relacionamento complicado.
Ontem, a família lamentou a insegurança a que estão submetidas as vítimas de violência doméstica. ;As medidas judiciais não são suficientes, não estão protegendo. Se alguém assalta, a Justiça vai dar um papel ao acusado dizendo que ele não pode mais roubar?;, questionou Samuel. Debora tinha uma medida protetiva de urgência contra Sergio desde agosto do ano passado, mas, ainda assim, ela manteve contato com o policial.
A imprensa não pôde acompanhar o velório e o sepultamento do policial civil. Por telefone, um familiar do agente afirmou: ;Nada justifica essa tragédia tão grande que ele fez. Mas o Sergio não é esse monstro que estão pintando. A Debora não merecia ser morta nem a minha família merecia passar por isso;.
Em setembro do ano passado, Sergio e Debora tiveram uma briga, e ela acionou a polícia, mas ele não foi preso porque alegou que ela permitia o contato entre eles. Em novembro, a medida protetiva foi revogada pelo juizado de violência doméstica e familiar contra a mulher, de Sobradinho. O policial chegou a ser condenado, mas foi absolvido, na segunda instância, pela 2; Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT).
Apesar de ter passado por três inquéritos policiais no ano passado, sendo dois por violência doméstica cometida contra Debora e um pelo descumprimento da medida protetiva, o policial civil continuava de posse da arma da corporação. Em janeiro de 2018, ela foi recolhida, mas devolvida em abril do mesmo ano, por decisão judicial.
A arma usada para matar a professora é, em princípio, da corporação. ;A confirmação de que tenha sido utilizada para a prática do fato depende de análise pericial. Não havia limitação ao policial sobre as suas atividades, as quais exercia regularmente na 13; DP (Sobradinho);, informa nota da Polícia Civil. O Correio questionou a Divisão de Comunicação quanto à abertura de processos administrativos para investigar a conduta do agente. Contudo, a PCDF alegou que não se manifestará a respeito.
A Secretaria de Segurança Pública (SSP) reforçou a declaração do governador Ibaneis Rocha de que lançará uma campanha de conscientização. ;Para ampliar a proteção das vítimas de violência doméstica, a SSP pretende implementar, por meio de dispositivos eletrônicos, o projeto de monitoração móvel de medidas protetivas determinadas pela Justiça;, reforçou a pasta, em nota. A secretaria, porém, não informou quando o projeto começa. ;Em relação às condutas praticadas pelo policial, a Polícia Civil instaurou os respectivos inquéritos policiais e todas as medidas previstas na Lei Maria da Penha foram tomadas. Como se tratavam de condutas que não estavam diretamente ligadas à função por ele exercida, a responsabilidade ficou limitada ao processo criminal;, concluiu a SSP.
Doçura
;Ela era uma pessoa tão pacífica, que nunca levantava a voz para ninguém. Choca a todos nós ver esse fim;, recordou Ana Cláudia Souza, 39, no velório de Debora Tereza. Amigas desde 2007, ela lembra do amor da vítima pelos animais. ;Ela gostava muito de gatos; era como um. Reservada, tímida e ficava na dela. Mas, quando pegava intimidade, abraçava e mostrava a doçura de pessoa que era;, conta. No trabalho, era apaixonada pela carreira.
A professora morreu no Dia Nacional do Pedagogo e foi velada no Dia do Profissional de Letras, curso que fez na Universidade de Brasília (UnB). Ontem, Ana Cláudia, uma das poucas a saber do relacionamento de Debora com Sergio, disse que a vítima se mudou para a Asa Norte, por medo ; ela teria se afastado do policial civil ao descobrir que ele era casado e tinha dois filhos. ;Cheguei a procurar lugar para ela morar longe de Sobradinho, mas ela amava a cidade, porque tinha a cara dela. Mais simples, calma, interiorana. Foi uma dor para ela mudar de cidade. Ela jamais faria se não fosse muito grave;.
Segundo ela, o assassino havia ido à escola em que ela dava aula, em Sobradinho, onde provocou uma discussão. Ana ressalta que a amiga e outras mulheres que sofrem violência costumam ser muito julgadas quando expõem o que sofrem, e que isso contribui para o silêncio. ;A sociedade tem mania de não acreditar na vítima, dizer que a mulher é louca. Fico triste quando falam que ela aceitava a convivência com ele. Mas ela tinha medo, era obrigada a isso;, explica Ana Cláudia.
Memória
Crime premeditado
Às 9h42, o policial civil Sergio Murilo chegou ao prédio da Coordenação Regional de Ensino do Plano Piloto e Cruzeiro, na 511 Norte. Apesar de estar armado, não foi revistado. Às 9h43, após se identificar com a identidade funcional, o agente passou pela catraca e seguiu para o terceiro andar, onde Debora trabalhava. Lá, ele se dirigiu à Subsecretaria de Gestão de Pessoas e, na recepção, pediu para falar com a professora. Às 9h45, a vítima apareceu e, ao se virar de costas, Sergio Murilo disparou três vezes contra ela. Em seguida, atirou contra a própria cabeça.
Nova linha de apuração
A Polícia Civil tem investigações abertas de mais crimes que podem ter sido motivados por gênero. É o caso da morte de uma moradora de Taguatinga, de 68 anos, em 29 de março, cuja linha de investigação foi alterada. A 17; DP (Taguatinga Norte) acreditava se tratar de suicídio, mas, agora, a suspeita é de feminicídio, que seria o 14; no ano. A vítima, servidora aposentada da Secretaria de Educação, foi encontrada morta, em casa, em Taguatinga, com um cabo de USB enrolado no pescoço e uma sacola plástica na cabeça. Há cerca de 20 dias, investigadores descobriram que a vítima se relacionava com um rapaz mais jovem. Ele é suspeito. A apuração mostrou que o casal se conheceu em um site de relacionamento e marcou encontros na casa da vítima sem que a família dela soubesse.
Artigo
por Mariana Silva Nunes, promotora de Justiça
O direito das mulheres e a Lei Maria da Penha
A edição da Lei Maria da Penha representou um marco para a sociedade brasileira. A violência contra a mulher deixou de ser um conflito privado e invisível para se tornar um problema social, cujo enfrentamento demanda atuação articulada do poder público e da sociedade. A violação sistemática dos direitos das mulheres é resultado da construção de uma sociedade machista e patriarcal, em que os homens são ensinados a representar o poder, a força e a autoridade, exercendo o controle sobre mulheres, filhas e filhos. Às mulheres, por sua vez, ensina-se a serem zelosas, sensíveis e submissas.
Esse contexto possibilita a formação de relações pautadas no domínio do masculino sobre o feminino, cujos rompimentos resultam em agressões físicas, morais, patrimoniais, sexuais e, no seu ápice, em mortes. Ou seja, a violência é um fenômeno social, e as estatísticas demonstram que as agressões contra as mulheres ocorrem quando elas rompem a relação afetiva ou exercem suas individualidades, seja no trabalho, seja na vida social.
Entretanto, o fenômeno social despontado pela Lei Maria da Penha possibilitou que as mulheres encontrem no poder público o apoio para romper relações marcadas pela violência e pelo sofrimento. Em cada canto deste país de dimensões continentais, as mulheres sabem que podem pleitear as medidas protetivas em seu favor, que o agressor de mulheres poderá ser privado de sua liberdade e que estamos implementando um sistema de efetiva punição.
Atravessar as barreiras da vergonha, do medo, da culpa e da exposição e trazer ao conhecimento das autoridades as violências sofridas é a mais poderosa arma que a mulher tem em seu favor. O envolvimento dos familiares e da comunidade também é imprescindível para o fortalecimento do sistema de justiça, para a implementação de políticas públicas de proteção à mulher e, principalmente, para transformar a sociedade, disseminando-se a cultura da igualdade e do respeito entre homens e mulheres e construindo um futuro em que todas as meninas e mulheres possam andar nas ruas, viver em seus lares e trilhar seus caminhos sem medo de represálias.