postado em 26/05/2019 04:08
O sentimento de saudade é o único que preenche a lacuna remanescente após a morte de uma pessoa querida. Para quem perdeu alguém vítima de um dos inúmeros casos de feminicídio, a dor do luto se soma à indignação. Rosana Borges de Oliveira, 48 anos, vive isso desde o dia em que enxergou o medo nos olhos da irmã mais nova, Isabella Borges, minutos antes de ela ser assassinada a tiros pelo ex-companheiro Matheus Galheno, em abril. Ele se matou em seguida, na frente da filha de 1 ano do casal. O irmão gêmeo da criança estava no cômodo ao lado e também ouviu os disparos.
Rosana recebeu o Correio na casa dela, no Paranoá. A conversa ocorreu na mesma sala em que ela encontrou os corpos da irmã e do algoz. ;Enterrar minha mãe (em 2013) não foi tão difícil quanto enterrar a Isabella, colocá-la dentro daquela sepultura fria. Foi como perder uma filha;, contou, emocionada. Enquanto Rosana desabafava, um dos gêmeos sorria e brincava com a repórter, ainda muito inocente para compreender o ocorrido. ;Hoje, eles são meu único consolo. Antes de disparar, ele (Mateus) me falou para pegar os meninos. A Isabella me entregou um e falou ;Cuida deles;;, completou a servidora pública.
Ela conseguiu levar apenas uma das crianças para o quarto. Até hoje, o trauma a impede de voltar para o trabalho, e a sensação de impotência diante da vida que não pode ser recuperada permanece. ;Acordei com ela dizendo que o Mateus ia matá-la. O olhar dela dizia: ;Ele vai acabar com minha vida aqui. Não há mais o que fazer;;, relembrou. ;(Se estivesse viva), ela teria dito: ;É o que você tinha me falado;. Mas ela não pôde me dizer que eu tinha razão. Uma razão ridícula, que eu nunca queria ter tido. Eu queria estar errada;, relatou, com a voz embargada, enquanto enxugava as lágrimas.
A relação das duas ia para além da irmandade. Pela diferença de 23 anos entre elas, Rosana tratava Isabella como uma filha. A perda foi como um pedaço levado embora. ;Sinto falta do nosso café da manhã; dela me dizendo ;Eu te amo; após uma discussão; dela gritando de felicidade quando os filhos faziam algo novo. Ela não tinha vontade de morrer. E ele veio e tirou a vida dela;, lamentou.
Acolhimento
A estudante Isabella Borges foi a sétima vítima de feminicídio no Distrito Federal em 2019. Até agora, 14 casos foram divulgados. Desde que o Código Penal foi alterado para incluir o assassinato de mulher pela condição de sexo feminino, em março de 2015, 29 homens foram condenados no DF, de acordo com o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT). De lá para cá, foram registrados pelo menos 86 casos desse tipo de crime, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP/DF).
Em Sobradinho 2, a Associação de Mulheres da cidade funciona desde 2000. A entidade nasceu de reuniões de um grupo de mulheres que se encontravam para compartilhar casos de violência doméstica e buscar apoio. Atualmente, há 438 mulheres cadastradas para receber atendimento. Por semana, cerca de 30 delas passam por lá à procura dos serviços gratuitos de assistência social e acompanhamento psicológico e jurídico.
Diretora social da entidade, Geralda Florisbela Gonçalves, 63 anos, considera falha a assistência oferecida pelo Estado, especialmente em relação à garantia da independência econômica das mulheres que são vítimas de violência doméstica. ;Estamos denunciando, mas continuamos morrendo. Falta reforço no primeiro atendimento. Se a vítima não tem emprego, ela não tem comida nem nada;, comentou a assistente social.
Ela também considera que, em muitos meios, a mulher é desencorajada a denunciar. ;Uma das vítimas deste ano em Sobradinho veio até nós para pedir um enxoval, mas não contou que era vítima de violência. Ela foi assassinada dias depois. Cada vez que morre uma mulher, morre um pouco de nós e do nosso trabalho;, comentou.
Para Monica Sapucaia Machado, doutora em direito político e econômico e professora da Escola de Direito do Brasil, é primordial garantir autonomia econômica às mulheres vítimas de violência. Além disso, ela associa o aumento dos casos à legitimação de um discurso conservador e preconceituoso.
;A coisa mais importante a se combater neste momento é o discurso de ódio. A violência contra a mulher acontece em todas as classes sociais. E a capacidade de o Estado não manter o agressor distante da família é uma situação muito grave, porque está atrelada aos problemas sociais e econômicos do país. Quando o agressor retorna à sociedade sem passar por ressocialização, a vítima precisa estar protegida pelo Estado para que os atos violentos não continuem;, ressaltou.
Interdição
Além de projetos do terceiro setor, há outras formas de acolhimento. Os Centros de Atendimento à Mulher (Ceam), por exemplo, dão auxílio jurídico e social (leia Ajuda). No entanto, um dos mais importantes pontos de assistência do DF encontra-se interditado desde abril de 2018 por determinação da Defesa Civil, que constatou problemas na infraestrutura, como ;desarrumo do prumo de arrimo e trincas;.
Em nota, a Secretaria de Estado da Mulher informou que o espaço é uma das ações do programa Mulher: Viver sem Violência, desenvolvido pela Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres (SNPM) do governo federal, em um convênio com o Governo do Distrito Federal para manutenção e gestão dos serviços da Casa. ;No termo de adesão, ficou estabelecido que a Casa da Mulher Brasileira seria construída pela Secretaria Nacional, onde o mandatário da obra é o Banco do Brasil;, informou a pasta, em nota.
Em dezembro de 2018, o Tribunal de Contas da União (TCU) deu prazo de até 90 dias para que a Secretaria Nacional e o Banco do Brasil encaminhassem plano de ação com indicação de ações, custos, prazos e responsáveis para recuperação da estrutura danificada do prédio da Casa da Mulher Brasileira, que foi estendido em março, para 120 dias. ;Não podemos retomar as atividades sem garantir a segurança de todos os servidores e às mulheres em situação de vulnerabilidade atendidas pela Casa da Mulher Brasileira;, destacou o GDF.
O Banco do Brasil informou que diversas reuniões ocorreram na busca de soluções conjuntas com o governo federal. ;No fim de abril de 2019, a construtora (responsável pelo prédio) e seus sócios foram notificados pela SNPM, para possíveis medidas administrativas e judiciais quanto à recuperação do imóvel.; Na nota, o banco ainda afirmou que há tratativas para assinatura de Acordo de Cooperação Técnica para elaboração de Especificação Técnica de Engenharia que servirá para contratação de projetos básico e executivo para determinar extensão das obras.
A SNPM, vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, informou que ;está viabilizando a recuperação do imóvel; e que ;o GDF está buscando formas de continuar os serviços em outros locais;. Nenhum dos órgãos, no entanto, deu prazo para a reabertura do espaço ao público.
"Ele fingia estar doente para ela ter pena. Ela não
o deixava porque tinha um coração muito bom;
o deixava porque tinha um coração muito bom;
Andressa Longuinho,
sobrinha de Isa Mara Longuinho, morta em janeiro de 2018
Lei do feminicídio
A Lei n; 13.104/2015 altera o artigo 121 do Decreto-Lei n; 2.848/1940 do Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o artigo 1; da Lei n; 8.072/1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos.