Cidades

Crianças moravam na rua

Os quatro irmãos vítimas de espancamento de tios, em Planaltina de Goiás, perambulavam pelas ruas de Brasília, com os pais, presos por tráfico de drogas em fevereiro. Conselhos tutelares do DF e Goiás alegam nunca terem sido informados da situação

postado em 01/06/2019 04:07
Lote onde fica o barraco que abrigava as quatro crianças e os dois tios: população colocou fogo no imóvelAs quatro crianças vítimas de violência em Planaltina de Goiás estavam em situação de rua. Sem nunca ter frequentado uma escola, os irmãos perambulavam por Brasília à procura de comida. Foram morar com a tia e o namorado dela, seus algozes, após a prisão dos pais por tráfico de drogas, no Distrito Federal, em fevereiro. Nos quatro meses em que viveram no município a cerca de 60km de Brasília, sofreram todo tipo de agressão: queimaduras, tapas e chutes. Por fim, uma delas não suportou os ferimentos e morreu por traumatismo cranioencefálico (Leia Entenda o caso).

Uma das vítimas está no Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib) desde ontem. Por ter duas fraturas no braço, precisou de atendimento intensivo. Exames de sangue mostraram que a menina também está com anemia. As outras duas vítimas tiveram alta do hospital público de Planaltina de Goiás ontem e estão em um abrigo na cidade. A outra irmã também será levada para lá.

Os pais das crianças de 1, 3, 7 e 9 anos têm extensa ficha criminal, tanto antes quanto depois da maioridade. Chefe da 13; Delegacia de Polícia (Sobradinho), o delegado Hudson Maldonado afirmou que, no caso mais recente, eles foram presos na rua. No boletim de ocorrência não havia detalhes sobre o que aconteceria com os filhos do casal.

Em 9 de fevereiro, os pais passaram por audiência de custódia. Na ocasião, a Defensoria Pública e o Ministério Público pediram para que a prisão preventiva fosse convertida em domiciliar para a mãe, por ela ter filhos com menos de 12 anos e estar amamentando. À época, o pedido foi negado, pois a ré e o companheiro estavam em situação de rua. No entanto, na tarde de ontem, a juíza de direito Lea Martins Sales Ciarlini acatou a solicitação. A mãe deixará a Penitenciária Feminina do Distrito Federal, mas deverá cumprir uma série de medidas, sob pena de voltar à prisão.


Falha no sistema
Apesar de a existência das crianças ter sido informada, nenhuma ação do Estado foi movida para assegurar a proteção delas. De acordo com a advogada Renata Malta Vila-Bôas, especialista em direito de família e professora do UniCeub, por ser segmentado, o sistema impediu que a Justiça interviesse na situação dos jovens. ;A juíza da vara que analisa a questão criminal não tem competência para determinar o recolhimento dessas crianças para um abrigo, porque ela não analisa o que vai para a vara civil ou da infância;, explica.

Em outras palavras, ela não pode encaminhar a situação das crianças para a Vara da Infância e da Juventude. ;Existem exceções em que o magistrado atua em casos gerais, especialmente em cidades pequenas, onde há apenas um juiz para tudo, mas, como aqui no DF é segmentado, ele não consegue fazer isso. É uma falha do nosso sistema que deixa as crianças reféns;, avalia Renata Vila-Bôas.

O Correio procurou o Conselho Tutelar de Sobradinho 1, área onde os pais foram presos, e foi informado de que não há nenhuma denúncia ou demanda sobre o caso no órgão. Na Vara da Infância e Juventude tampouco corre processo sobre a tutela ou acolhimento institucional das crianças. A promotora Lenna Luciana Nunes Daher, que acompanhou a audiência de custódia, informou, por meio da assessoria do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), que, no processo, as crianças não apareceram como vítimas e por isso não foi mencionada medida protetiva.

De acordo com o MPDFT, a família não informou em nenhum momento que elas precisariam de encaminhamento ou que estariam em estado de vulnerabilidade. Ao contrário, os próprios pais deram a entender que os jovens teriam alguém para cuidá-las. Por esse motivo, o órgão não acionou o Conselho Tutelar.

Barbárie
O delegado à frente do caso do espancamento dos irmãos, Antônio Humberto Soares Costa relata que, durante o testemunho da tia adolescente, ela teria pegado os sobrinhos na rua, em Sobradinho, e levado para o barraco em que morava, em Planaltina de Goiás. Em vez de acolhimento, o que as crianças receberam, no entanto, foi apenas violência.

Segundo o investigador, a jovem relatou com frieza que era ela quem fazia a maior parte das agressões por ser a tia, mas que o namorado também participava. ;Na noite de terça-feira, a garotinha de 7 anos era o alvo. Ela tentou se esconder sob uma mesa onde havia um lençol estendido e uma televisão. Para tentar fugir, a menina puxava o pano, mas eles deram diversos chutes na cabeça dela;, narrou o policial. Não precisava haver pretexto para tamanha brutalidade.

Com traumatismo craniano, a menina ficou desacordada e os tios fizeram com que ela passasse a noite do lado de fora do barraco, sozinha. ;Horas depois, no dia seguinte, ela começou a passar mal, ter enjoo e convulsões. Chamaram o Samu, mas era tarde demais;, lamenta o delegado. Ele pretende visitar os pais das crianças para entender como elas pararam nas mãos de pessoas tão violentas.


Entenda o caso

Tortura e morte

Na quarta-feira, duas meninas e um menino foram resgatados em Planaltina de Goiás, após serem vítimas de espancamentos dos tios, uma adolescente de 17 anos e Bruno Diocleciano da Silva, de 19. Com fome, uma das irmãs, de 3 anos, pediu ao vizinho que lhe desse comida. Por esse motivo, os tios se irritaram e passaram a espancar os pequenos. Um outro vizinho, ouvindo a gritaria, denunciou a situação à polícia, que acionou o Conselho Tutelar.

Quando os policiais, um conselheiro e uma equipe do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) finalmente chegaram ao endereço, no Setor Aeroporto do município, uma menina de 7 anos estava morta, ao relento. Os tios haviam dado chutes e usado vergalhão de aço e uma corda para bater na cabeça dela. Bruno foi preso preventivamente e a tia das crianças, apreendida.

Ontem, a Vara da Infância e da Juventude de Goiás decidiu pela internação da jovem na capital goiana. Bruno vai passar por audiência de custódia, que ainda não tem data marcada.




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