postado em 02/06/2019 04:27
;Lar; é uma palavra que vem do latim ;Laris; e tem um forte sentido simbólico: é o espírito protetor da casa e da família. Mas, para as mulheres vítimas de violência doméstica, os sentimentos de segurança e acolhimento estão longe de serem alcançados, principalmente debaixo do teto que as abriga. Prova disso é que todos os sete feminicídios ocorridos no Distrito
Federal, no primeiro trimestre de 2019, foram cometidos dentro das próprias residências. A morte é, no entanto, o triste fim de um grande ciclo de violência sofrido por elas. Antes da tragédia, os sinais de atrito entre os casais são perceptíveis e começam com pequenas humilhações, que logo se transformam em agressões. Flávio*, 56 anos, chegou a bater na ex-mulher e acabou preso. ;Se a gente tivesse diálogo no começo do relacionamento, não teríamos esse fim;.
Foi atrás das grades, onde permaneceu por dois dias, que o motorista Flávio começou a dar uma nova direção à própria vida e à da família. ;O dia em que eu agredi minha ex foi o pior da minha vida. O nosso menino tentou defender a mãe e também apanhou. Aí, eu fui preso no Dia dos Pais e comecei a me questionar se eu era uma pessoa de bem mesmo. Vi que tudo isso tinha sido muito pior para eles dois, porque o filho viu a mãe ser agredida pelo cara em quem eles confiavam;, disse.
Com tratamento psicológico e orientações de profissionais, Flávio conseguiu superar a conduta machista e agressiva que, até então, não admitia ter. ;Tem muito homem que ainda pensa que a mulher é propriedade dele. Aí briga, xinga, bate, rebaixa e faz o que quer. Isso tem que mudar;, afirma. Dois anos depois da separação, ele, envergonhado, reconhece que não é uma vítima, mas, sim, o agressor. ;Ainda sofro muito, porque percebo que não soube dar valor à família que tive. Mas hoje sou um homem novo e, se eu tiver uma nova oportunidade de me relacionar com outra mulher, vou saber como agir de maneira correta, dialogando e respeitando. Fazendo tudo diferente.;
Prevenção
A transformação na mentalidade do motorista veio por intermédio da Assistência da Prevenção Orientada à Violência Doméstica, mais conhecida por Provid. ;O programa (da Polícia Militar) foi fundamental em tudo. Os policiais começaram a trabalhar comigo e com minha ex-esposa, sempre imparciais, sem ficar de um lado nem de outro;, elogia Flávio. O Provid foi criado em 2014 e surgiu a partir da filosofia de polícia comunitária, que se insere em núcleos familiares ajudando a prevenir, inibir e interromper o ciclo de violência doméstica, além de intervir em casos de abandono de incapaz, maus-tratos, cárcere privado e tentativas de homicídio.
A coordenadora geral do programa, tenente Adriana Vilela, reitera que a corporação está atenta a essa responsabilidade. ;Nós realizamos ações em diferentes eixos, mas a maior parte delas é para evitar que crimes aconteçam. Fazemos palestras para ensinar o que é violência doméstica e o que é a vulnerabilidade das mulheres, realizamos visitas e mostramos para as famílias como combater as agressões por meio do diálogo e de forma não violenta;. Desde o começo do ano, o Provid visitou 3.670 casas, atendendo diretamente 1.085 pessoas. O acumulado de 2018 foi de 10 mil residências atendidas, alcançando 200 mil vítimas.
Como a PM é uma das primeiras representações do Estado a chegar nas residências onde acontecem violências, os militares também fazem um papel de direcionamento a outros serviços do governo. ;Às vezes o marido tem problema com alcoolismo, então a gente aciona uma rede do GDF que fornece atendimento com o Alcoólicos Anônimos, por exemplo. Ou então se a mulher está precisando de emprego, porque o homem fez com que ela fosse financeiramente dependente dele, nós procuramos uma oportunidade para ela sair dessa condição e ter sua própria renda;, detalha a tenente.
As origens
O Distrito Federal registrou 4.997 casos de agressões contra mulheres entre janeiro e abril deste ano. Por dia, são mais de 40 ocorrências de Lei Maria da Penha, reflexos de relacionamentos abusivos e desestruturados que afetam todo o núcleo familiar. Um fato ignorado por diversas vezes é que a violência física raramente surge no início das relações, sendo originada de situações consideradas ;menores;. É o que aponta a psicóloga Camila de Aquino Morais. ;Muitos casais possuem uma grande inabilidade para o lidar com pequenos conflitos. Isso, por vários motivos, mas um deles é que existe uma cultura do machismo que estereotipa padrões.
de que o homem está acima da mulher. É daí que se inicia um ciclo que evolui e que pode acabar em um feminicídio.;
O Distrito Federal registrou 4.997 casos de agressões contra mulheres entre janeiro e abril deste ano. Por dia, são mais de 40 ocorrências de Lei Maria da Penha, reflexos de relacionamentos abusivos e desestruturados que afetam todo o núcleo familiar. Um fato ignorado por diversas vezes é que a violência física raramente surge no início das relações, sendo originada de situações consideradas ;menores;. É o que aponta a psicóloga Camila de Aquino Morais. ;Muitos casais possuem uma grande inabilidade para o lidar com pequenos conflitos. Isso, por vários motivos, mas um deles é que existe uma cultura do machismo que estereotipa padrões de que o homem está acima da mulher. É daí que se inicia um ciclo que evolui e que pode acabar em um feminicídio.;
No caso de Flávio e da ex-companheira, o auxílio só veio após os primeiros conflitos no relacionamento. O mesmo aconteceu com Luís*, 46, que considera a ajuda positiva, porém tardia. Após ser denunciado por sua filha, ele chegou a ser preso por três dias e foi obrigado a participar de reuniões semanais no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT). ;No começo, achava que aquilo era uma perda de tempo, mas fui aprendendo coisas que mudaram minha vida. Hoje, considero que esse curso deveria ser dado até dentro das escolas e nas empresas privadas, porque é melhor atuar antes de o problema acontecer. A prevenção é mais barata.;
A atuação precária do governo no combate à cultura machista e baixa oferta de suporte primário aos casais que passam por conflitos são uns dos principais gargalos apontados pela terapeuta. ;Ainda temos esse ponto frágil da prevenção. Isso é uma falha em diferentes setores, como a saúde, por exemplo. Muitas vezes pensamos no que fazer depois que o problema acontece, mas, por que não agir antes?;, questiona Camila de Aquino. Para ela, o Estado precisa pensar em ações que tragam visibilidade para reflexões sobre como se relacionar de forma saudável e respeitosa.
Importância
Depois de participar de várias rodas de conversa, ouvir pessoas capacitadas e dialogar sobre seu problema, hoje Luís consegue perceber a importância de não se colocar acima da mulher. ;O homem não gosta muito de ouvir a esposa, mas, depois do curso, vi que tudo que eu pensava estava errado. Agora, eu ainda estou casado porém é uma relação completamente diferente. Quando a gente briga, começo a pensar mais, conversar... Se os ânimos se exaltam, a gente para e vê que é melhor respirar e continuar falando depois.;
Parte das orientações que ajudaram Luís vieram de João Wesley Domingues, coordenador do Grupo Reflexivo para Homens, do TJDFT. O projeto conduzido por ele começou em 2016 e atendeu 1,9 mil pessoas detidas por violência doméstica. ;Todo homem que agride mulher apresenta uma justificativa, como bebida ou ciúmes. Mas por que ele direciona aquela violência à mulher?;, reflete. João acredita que, antes de tudo, é necessário que cada pessoa tenha consciência dos contextos sociais que levam às agressões, para que depois exista um processo de autorresponsabilização: ;É muito importante acabar com a justificação da violência e a banalização;, pontua.
Conduta
A polícia comunitária é um estilo de gestão caracterizado pela proximidade entre os militares e a comunidade na qual atuam. O objetivo é estimular que os cidadãos repassem informações sobre problemas da vizinhança aos policiais, de forma a facilitar o trabalho e a efetividade na prevenção de crime.
NÚMEROS
O Provid visitou 3.670 casas,
atendendo, diretamente, 1.085 pessoas.
O acumulado de 2018 foi de
10 mil residências atendidas, alcançando 200 mil vítimas
Artigo
por Isabel Cristina Ribeiro
É preciso conversar
A violência contra a mulher é um fenômeno social, cujas bases se encontram na forma como homens e mulheres são socializados, desde a infância até a vida adulta. Em razão de sua gravidade, do número de vítimas e das sequelas que acarretam, essa violência é considerada hoje um problema de saúde pública. Atualmente, assistimos a um aumento preocupante no número de casos de violência e de feminicídios na sociedade. As pesquisas só não conseguiram responder se houve um aumento da ocorrência de violências, um aumento das notificações, ou ambos.
Apesar de o tema estar cada vez mais presente nas discussões sociais e em políticas públicas específicas, vem sendo tratado como um problema de apenas uma parcela da sociedade: as mulheres. A elas, cabe romper o ciclo da violência, a elas, cabe realizar a denúncia, buscar ajuda e transformar a própria realidade. Tal postura apenas expressa e reproduz um dos dispositivos da lógica machista, que determina que à mulher cabe tudo o que for relacionado ao cuidado. Reproduz ainda o estereótipo masculino de autossuficiência, uma crença de que os homens não precisam de ajuda ou que buscá-la os torna ;menos homens;.
Seguindo nesses dispositivos enrijecidos sobre o que cabe ao homem e à mulher, como avançar na construção de relações saudáveis e livres de violência? O conflito é inerente às relações humanas, mas a violência, não. O feminicídio é a ponta de um iceberg que começa com sutilezas, desqualificações, controle, em uma lógica relacional de disputa de poder, em vez de parceria. Precisamos aprender a diferenciar uma relação saudável de uma relação abusiva, quando ainda seja possível atuar sobre a dinâmica e superação da violência. Para reduzir as estatísticas atuais, precisamos que toda a sociedade se ocupe com essa transformação, não apenas uma parcela dela.
E qual seria, então ,o lugar e a responsabilidade dos homens na superação e prevenção da violência nas relações íntimas? Não é possível combater a violência sem repensar masculinidades. Há recursos no âmbito de políticas públicas, como os núcleos de acompanhamento para autores de violência, e também no âmbito privado, como grupos reflexivos, de mútua ajuda sobre masculinidades e psicoterapias. Espaços como esses podem auxiliar os homens a construírem recursos para uma masculinidade menos tóxica, mais saudável. É fundamental, portanto, que os homens se impliquem não apenas na causalidade do problema, mas em sua solução.
A problematização da cultura machista foi iniciada pelos movimentos de mulheres, por sofrerem diretamente as violências que tal cultura permite. Porém, a construção de uma cultura de paz só será efetiva quando os homens compreenderem que o machismo também os limita, e se responsabilizarem pela construção de uma relação consigo e com o mundo mais saudável e livre.
Isabel Cristina Ribeiro é psicóloga especialista em violência familiar e gestora em políticas públicas do Nafavd