Cidades

Descaso e pouca infraestrutura: conselhos sobrecarregados enfrentam crise

Instituições ligadas ao amparo de crianças e adolescentes em situação de risco enfrentam crise por causa da pouca infraestrutura e do descaso. Governo do DF anuncia eleições para 200 novos conselheiros em outubro

Alan Rios
postado em 09/06/2019 08:00
Crianças em situação de vulnerabilidade são o foco dos conselhos tutelares, que atuam junto às famílias e às comunidades para tentar impedir tragédias como a do menino Rhuan

O conselheiro tutelar Adjânio Santos, 37 anos, foi uma das primeiras pessoas a falar com Rosana Auri da Silva, 27, a mãe que matou e esquartejou o próprio filho, Rhuan Maycon da Silva, 9 anos. Sem qualquer denúncia por parte da vizinhança, o garoto viveu cinco anos de maus-tratos, em condições precárias de saúde, e teve até o pênis cortado por Rosana e a companheira dela, Kacyla Priscyla Santiago, 28. É função de Adjânio acompanhar tragédias como a do pequeno Rhuan e, principalmente, tentar evitá-las. Mas a estrutura que conselheiros encontram para poder trabalhar é precária. ;Por lei, a cada 100 mil habitantes se cria um Conselho Tutelar na cidade. Mas Samambaia, que tem mais de 300 mil pessoas, conta apenas com duas unidades, que ficam sobrecarregadas de trabalho e não conseguem atender todas as demandas;, destaca ele.

O relato evidencia o descaso do poder público em regiões do Distrito Federal e do Entorno, que presenciam graves violações dos direitos das crianças e dos adolescentes, além da falta de estrutura dessas redes de proteção. ;Não temos nem um carro para atender às denúncias, é comum a gente se locomover de ônibus. Para piorar, quando chegamos à casa de uma família que está passando fome, pedimos uma cesta básica ao Centro de Referência de Assistência Social (Cras), que demora mais de mês para entregar, quando entrega;, desabafa o conselheiro.

A tragédia de Rhuan marcou Samambaia e também a vida do profissional que lidou com o crime. ;Tudo isso foi muito pesado. Eu sou pai e tenho que atuar constantemente com casos delicados. Na primeira semana em que assumi o Conselho Tutelar da cidade, lembro que trabalhei em uma situação em que uma criança de 2 anos sofreu abuso sexual de um líder religioso. Era a idade do meu filho. Fiquei com depressão, mas o governo sequer me forneceu acompanhamento psicológico ou um plano de saúde;, conta Adjânio.

Mesmo com essas dificuldades, o trabalho da rede de proteção das crianças e adolescentes é elogiado por quem precisou de auxílio. A adolescente E. N., 16, (nome fictício) conta que a situação social da família dela é dividida entre o antes e depois das ajudas do Conselho Tutelar. ;Fomos até lá no ano passado pela primeira vez e recebemos um acolhimento enorme. Os conselheiros me matricularam numa escola, ajudaram a conseguir um estágio no programa Jovem Candango para reforçar a renda de casa e conseguiram uma vaga para minha irmã na creche;. Para ela, isso melhorou completamente a situação no lar, que, por algumas vezes, ficou sem alimentos básicos. Também é positiva a visão de Thamara Santiago, 32. A auxiliar de limpeza diz que sempre que precisou do Conselho foi bem atendida: ;Eles trabalham fazendo milagre, porque não têm muitos recursos;.

Na mesma semana em que Rhuan Maycon foi assassinado, a cerca de 60km de Samambaia, outra criança morreu pelas mãos de familiares e mais três foram agredidas. O crime aconteceu em Planaltina de Goiás (GO) e teve como vítimas um menino de 8 anos, uma menina de 6, outra com 4 anos, além de uma bebê de 1. Eles foram espancados por pedir comida ao vizinho (leia Memória). Em crimes como este ficam questionamentos sobre até onde vai o acompanhamento do Estado para preservar essas vidas. De acordo com profissionais da área de defesa desses direitos, há casos em que não é possível se antecipar e evitar uma tragédia, mas a conscientização pode ser um ponto chave para o futuro.

;No assassinato de Rhuan, por exemplo, não pudemos fazer nada para evitar, porque não havia denúncias anteriores. Os vizinhos não sabiam desses maus-tratos;, conta Adjânio. O conselheiro diz ainda que cabe à própria comunidade denunciar os atos criminosos contra crianças e adolescentes, pois, para que o trabalho governamental possa ter sucesso, é necessário que exista uma rede de apoio populacional. ;Não precisa nem esperar um crime acontecer. Se alguém desconfiar que uma família está maltratando um menor, por exemplo, deve procurar o Conselho Tutelar ou a Vara da Criança e do Adolescente para realizar uma denúncia, que pode ser anônima.;

Clóvis de Souza: ''Pouco apoio do Estado, que não quer investir nos programas de proteção''

Convênios

Segundo a Secretaria de Estado de Justiça e Cidadania, responsável pelos 40 Conselhos Tutelares do DF, ;o fortalecimento da atuação dos conselhos tutelares é uma prioridade;. A pasta informou que está em ;processo de repactuação e de novos alinhamentos com faculdades e universidades para firmar convênios que visem à prestação de serviço de assistência psicológica aos conselheiros;, e que já providenciou atendimento ao profissional responsável pelo caso do garoto Rhuan.

Entre as ações preventivas do governo, estão programas nas escolas públicas, com palestras e projetos educativos que ressaltam pontos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como descreve Janaina Almeida, secretária executiva da Secretaria de Educação do DF. ;Cada orientador, de cada instituição, desenvolve um plano de ação para conscientizar os meninos. Além disso, também temos ações gerais de toda a rede, como a Campanha Faça Bonito, que traz ações de combate ao abuso e à exploração sexual contra crianças e adolescentes, e a Semana da Educação para a Vida;, diz. Janaina explica ainda que os professores e coordenadores pedagógicos têm experiência para identificar sinais de violência e abandono nos alunos, algo que não é raro nas escolas.

Também há trabalhos de proteção na Secretaria de Saúde do DF. Segundo a pasta, todas as Unidades Básicas de Saúde contam com profissionais capacitados para identificar uma situação de violência no momento em que recebem pacientes com indícios de agressões ou abusos. ;Quando isso ocorre, a possível vítima é encaminhada para atendimento no Programa de Pesquisa, Assistência e Vigilância à Violência (PAV), que acolhe a mulher ou criança que passou pela situação;, informa nota da pasta de Saúde. Também há atendimento no Centro de Orientação Médico Psicopedagógica (Compp/SES), que presta acolhimento multi e interdisciplinar em saúde mental a crianças e adolescentes do DF e entorno.

Adjânio Santos: Conselho Tutelar de Samambaia tem pouca estrutura


Dificuldades

Mas, apesar de contar com essas iniciativas, a população encontra ainda uma atuação limitada pela falta de recursos. Responsável por fazer contatos entre moradores e instituições do GDF, o conselheiro tutelar da Estrutural, Clóvis de Souza Campos, 34, observa dificuldades em prestar assistência na região. ;O Conselho da nossa cidade enfrenta barreiras com muitos órgãos públicos por conta dos problemas orçamentários de cada um deles. Temos pouco apoio do Estado, que não quer investir nos programas de proteção. Pedimos um auxílio psicológico, jurídico ou financeiro para uma família que está precisando de apoio, e isso demora muito ou até é negado;, reclama o conselheiro. Ele lembra ainda que a Estrutural recebeu pouco auxílio após o fechamento do Lixão, o que fez com que muitos adolescentes filhos das pessoas que trabalhavam nesse aterro passassem a ser aliciados pelo tráfico de drogas, por exemplo.

As deficiências no atendimento também são analisadas por Luisa Marillac, promotora de Justiça de Defesa da Infância e da Juventude do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT). ;Os Conselhos Tutelares, que são a base da rede de apoio, articulam várias ações de proteção. Mas isso depende de medidas públicas sociais que garantam educação, saúde, lazer, assistência social; Precisamos que essas políticas públicas estejam articuladas. No entanto, falta muito investimento nessas áreas.; A promotora também enxerga uma precarização dos Centros de Referência de Assistência Social (Cras), sem número de servidores adequados e com baixo orçamento.

40
Número de conselhos tutelares do DF

Eleição

Criados em 1990 pelo Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), os conselhos tutelares têm sua atuação diante de situações de ameaça ou de violação dos direitos, com o objetivo de proteger a criança ou o adolescente que está em situação de vulnerabilidade. O Distrito Federal conta com 40 unidades, cada uma com cinco conselheiros eleitos pela comunidade e uma equipe administrativa para atender as demandas da população. O GDF lançou, na última semana, um edital de chamada para novos conselheiros, que podem se candidatar pelo site www.crianca.df.gov.br. É necessário ; entre outros critérios ; ter experiência comprovada de, no mínimo, três anos na área da infância e adolescência. Em outubro, a população escolherá por meio do voto os 200 novos conselheiros tutelares que atuarão entre os anos de 2020 e 2023.

Memória

Agressão e morte
Em 29 de maio, quatro crianças foram espancadas pelos tios e uma morreu na casa da própria família, no Setor Aeroporto, em Planaltina de Goiás. As vítimas têm 1, 3, 7 e 9 anos, de acordo com a Polícia Civil. Uma adolescente de 17 anos e um jovem de 19 foram detidos como suspeitos de serem os autores do espancamento. Segundo a Polícia Militar, eles cometeram as agressões porque as vítimas tinham fome e pediram comida a um vizinho. Os pais delas estão presos desde fevereiro por tráfico de drogas. Duas das três crianças que sobreviveram estão em um abrigo em Planaltina de Goiás. A terceira está internada no Hospital da Criança de Brasília José de Alencar (HCB). Ficará a cargo da Justiça a definição acerca da tutela.


Denuncie

; A população pode realizar denúncias anônimas pelo Disque 100, telefone gratuito. O atendimento é 24h e ocorre, inclusive, nos domingos e feriados. Também é possível utilizar o aplicativo Proteja Brasil, em que o usuário consegue apresentar, via celular, sua queixa à Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos.

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