Cidades

Crônica da Cidade

postado em 10/06/2019 04:06
Desnudar a alma

Descobri Clarice Lispector na adolescência, entre as referências esporádicas de A hora da estrela e a leitura para a seleção da universidade de A paixão segundo G.H. Difícil entender por que uma obra praticamente indecifrável fazia parte da lista obrigatória de referências literárias desse período de preparação para o ensino superior. Minha juventude parecia não caber na epifania daquela personagem. Seus pensamentos e ações soavam como mero delírio.

A leitura precoce do livro afastou muitos colegas da obra completa da escritora. Mas algo ainda me fascinava naquele texto e naquela mulher com traços estrangeiros que marcou a literatura do país. A busca de sentido num fluxo de consciência caótico talvez consistisse mesmo uma tarefa impossível. Isso por si só foi suficiente para despertar curiosidade.

Na interpretação profunda e sutil de Beth Goulart na peça Simplesmente eu, Clarice Lispector me intrigou ainda mais. Era o palco do CCBB tomado por uma poesia inquietante e toda a elegância e sutileza da mulher de postura firme que abria coração e expunha feridas aos leitores. E fazia isso em narrativas fictícias ou sobrevoando a realidade, para deleite ou angústia de quem acompanha cada oração. Anos mais tarde, mergulhada na descrição precisa, fruto de anos de pesquisa do escritor Benjamin Moser, redescobri sentidos em muitos dos textos de Clarice.

As crônicas, apenas pincelei quando o gênero passou a fazer parte do meu ofício, como aconteceu com ela no Jornal do Brasil. A análise de Severino Francisco para o Correio do novo livro Todas as crônicas me deu vontade de mergulhar nas 700 páginas do subgênero que a escritora criou, a crônica metafísica, como define com primor o jornalista. Ele descreve ainda com esmero a descoberta de Clarice a partir do gênero literário: ;Sentia-se exposta, angustiada de desvelar a intimidade mais secreta. Aprendeu que ser cronista é desnudar a alma;.

Bela definição para um texto que flerta de forma constante com a poesia e flui em construções por vezes desordenadas. Essa é sempre minha pretensão ou vontade diante da folha em branco a ser preenchida. Talvez por isso os textos de Clarice constituam fonte de inspiração ; um fim para a descoberta que começou há tantos anos e amadureceu. Ainda falta, porém, muito para aprender a expor a alma como ela conseguia. Escancarar amor, dor, gritos de revolta. Escrever sem tirar a pena do papel. Como diria o ditado (im)popular da era dos computadores: ;A vida não tem control+Z;.



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