postado em 22/06/2019 04:18
Brincadeiras de desprezoUma das melhores lições deixadas por Freud foi a de que as piadas podem ser uma porta de acesso para o inconsciente das pessoas. Muitas vezes, por não termos coragem de dizer algo seriamente, acabamos por manifestá-lo em tom jocoso, para, depois, negar que se trata de uma afirmação verdadeira. ;É brincadeira;, nos defendemos. Mas no fundo, no fundo, dizia o pai da psicanálise, achamos aquilo mesmo, ainda que, em alguns casos, nem tenhamos noção clara disso.
Em Brasília, infelizmente, essa desculpa já foi usada, mais de uma vez, por pessoas que haviam acabado de cometer atrocidades. Quando jovens de classe média resolveram atear fogo ao indígena Galdino Jesus dos Santos, justamente no Dia do Índio de 1997, saíram-se com a mesma desculpa. A intenção não era matar, mas só pregar um susto naquele que eles acreditavam ser um mendigo, não um índio. É como se dissessem: ;Era brincadeira.;
Mais de 22 anos depois, há uma semana, um casal a bordo de uma Mercedes-Benz quase matou uma senhora que, para ganhar a vida, vendia balões infláveis na porta de uma festa junina em Taguatinga. A mulher no banco do carona puxou os produtos para dentro do carro e fechou a janela. Em seguida, o motorista arrancou, e o resultado foi trágico.
Como os balões estavam amarrados a seu braço, a idosa foi arrastada por mais de 100 metros, ficando com hematomas, escoriações e dores por todo o corpo. ;Vi a morte de perto;, contou depois Marina Izidoro, 63 anos. Já o motorista, ao prestar depoimento à polícia dias depois, disse, sem originalidade alguma: ;Foi brincadeira.;
Brincadeira como as dos assassinos de Galdino ou dos agressores de dona Marina revelam muito sobre o inconsciente social de nossa cidade ; e de nosso país. Nossa desigualdade crônica é alimentada por esse desprezo que se tem pelos mais pobres. Para muitos dos que têm uma vida confortável, os brasileiros mais humildes são sub-humanos, logo dignos de expressões desrespeitosas, piadas e, claro, ;brincadeiras;.
Da mesma forma como os chistes dos quais falava Freud ajudam a compreender o inconsciente de uma pessoa, brincadeiras como roubar os balões de uma senhora que precisa trabalhar na rua sábado à noite ou incendiar o cobertor de um homem que dorme em uma parada de ônibus revela muito sobre um aspecto não assumido de nossa sociedade. O lado desumano, arrogante e insensível às dificuldades dos mais pobres.
Brincadeira ; a brincadeira de verdade ; é algo que fazemos apenas com amigos. E com moderação, é bom lembrar. Quando dirigimos a brincadeira a um estranho, quase invariavelmente, estamos na verdade dirigindo nosso ódio e desprezo a ele. Quando pessoas de classe média escolhem os mais pobres para ;pegadinhas; que matam ou podem matar, nada mais estão do que expressando sua falta de respeito e empatia a essas pessoas. Vergonha deles. Vergonha de nossa cidade. Vergonha de nosso país.